Artigo

A internet como vício

Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Humberto Dantas
é cientista político, doutor em Ciência Política. Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Milhões de pessoas vivem disso. A internet é efetivamente um grande espaço de negócios de naturezas diversas e algumas dessas iniciativas preocupam, gerando prejuízos inestimáveis às sociedades – a despeito de ganhos e avanços expressivos. E aqui algo precisa ser dito: internet vicia e estamos naquele instante da História em que não sabemos exatamente o que ocorrerá e nem onde iremos parar com tamanha exposição e utilização. Falta equilíbrio.

As gigantes da tecnologia sabem disso e investem sobre tal realidade de forma exagerada. O poder é tão expressivo que conseguem fazer com que governos firmem posições em torno de interesses virtuais. Parte das diferenças entre Brasil e Estados Unidos, hoje, se funda em tal realidade. No Brasil, alguns agentes perceberam que a internet precisa de limites, contrariando interesses econômicos daqueles que notam o quanto o brasileiro mergulhou sem piedade no vício virtual e se tornou um alvo fácil, se tornando um povo lucrativo ao extremo. 

Os defensores do consumo exagerado da internet são os mesmos que perceberam o quanto isso pode ser essencial para a criação de uma horda de fiéis ideológicos em realidade política. Os críticos mais radicais, sobretudo olhando o impacto político da exacerbação virtual, achavam ter o monopólio do fanatismo ideológico quando a eleição não havia escorrido para esta realidade. Dessa percepção surge um conflito de natureza polarizada que passa longe de resolver o problema. Repito: estamos diante de algo que vicia, e insistimos em discutir “liberdade de expressão” em realidade de ideologias. O caminho é outro. Não estamos preparados para tamanha ultra-exposição, mas seguimos alucinados ou interessados demais em certas “descobertas”. E aqui não estou falando em conteúdos criminosos, o discurso é anterior, está um passo atrás. Não é sobre “o quê” está disponível na internet, mas o quanto nos deixamos levar por qualquer coisa que lá esteja. Percebe? Vamos mudar de exemplo para tornar o argumento mais nítido.

Estudos mostram que existe uma correlação bastante elevada entre consumo de álcool e tabaco na adolescência, e o ambiente familiar. Artigo publicado em 2009 na Revista Paulista de Pediatria alertava que: “o ambiente familiar induz e facilita o uso de álcool e tabaco por adolescentes, tornando-se fundamental a utilização deste conhecimento na elaboração de projetos de prevenção e educação em saúde”. O que Rafael Souza MorenoI, Renato Nabas VenturaII e José Roberto S. Brêtas mostram é algo conhecido na bibliografia faz décadas. Isso levou o Estado brasileiro a uma série de proibições. Legalmente crianças e adolescentes não fumam, tampouco bebem. Legalmente. E o problema sempre desafia o Estado, bem como convive com interesses econômicos que se camuflam em aspectos de ordem moral. Tudo isso parece óbvio, e há quem duvide que tais observações em nada se relacionem com o início desse texto. Será?

Pois vamos tentar outros tipos de vícios. Em 2004, a Academia Americana de Pediatria lançava um estudo mostrando os males da TV, isso mesmo, a surrada e ultrapassada televisão, em crianças de um a três anos de idade. As conclusões eram preocupantes, a despeito de à ocasião já sabermos muito sobre os malefícios do equipamento na saúde infantil. De acordo com reportagem do Observatório da Imprensa à ocasião, “o resultado da pesquisa sugere que o hábito de ver TV superestimula e modifica o desenvolvimento normal do cérebro de uma criança. Entre os riscos encontrados estão dificuldade de concentração, impulsividade, impaciência e confusão mental”. Mas há quem duvidasse, e cá entre nós, a TV sempre foi uma ótima forma de colocar “as crianças em silêncio”.

O mesmo ocorre com o consumo exagerado de videogame e jogos eletrônicos em geral. Um exemplo mínimo dos males está associado a conteúdo oficial disponível no site da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, capital, datado de 2022, que fala em agudos distúrbios físicos e mentais, com destaque para os males à alimentação e ao sono.

E a internet? Multiplique tudo isso por números astronômicos. Mas você pode fingir que nada há de errado. Estudos mostram que o consumo excessivo de internet carrega danos absurdos, e não só às crianças – que costumamos utilizar como forma de tornar o apelo mais intenso e emocional. O uso exagerado da internet mastiga a capacidade cerebral do ser humano em geral. Ponto. E quanto a isso não há muito o que discutir. Trata-se, digamos assim, sem qualquer rigor acadêmico, mas com absoluto intuito de impactar: do álcool, do tabaco VIRTUAL com capacidade infinitamente mais intensa e destrutiva. E o que fazem muitos adultos com seus filhos? Nada, ou melhor, tudo… São “livres para educarem” e “sabem o que é melhor para as SUAS crianças”. Perfeitamente. Assim, pouco importa que as escolas chamem a atenção para desenhos que os pequenos fazem de seus pais com um retângulo escuro na altura dos olhos. Consegue imaginar? Para seus filhos não existe mais olhar, pois você está diretamente absorvido pela tela de seu “telefone esperto”. Pena que o esperto nessa história seja o aparelho. Imagine a cena, que se repete: pais ilustrados com uma tela no lugar dos olhos, atestando a desatenção dada aos filhos e a carência dos mesmos. Tratam-se dos atores que o estudo inicial diz que começam a beber e a fumar por causa dos péssimos hábitos domésticos. Tristeza…

Ilustra tudo isso de forma emblemática o desenho infantil Universo Z, apresentado a mim recentemente por um aluno de graduação. Nele, a personagem Z, uma criança, vive dentro de seu quarto e tem em seus dois “melhores amigos” um tablet chamado Taby e um computador chamado P.U. De acordo com definição da Inteligência Artificial do Google, consultada para descrever a atração: “as aventuras acontecem no quarto da Z e dentro de um universo digital onde tudo é possível”. Releia: “onde tudo é possível”.

Sigamos achando que é normal vivermos imersos e presos no universo virtual, sendo retratados por nossos filhos como ausentes e ofertando a eles o mesmo remédio, ou droga, que nos tira do presente e da realidade em que vivemos em nome de alguns instantes de entretenimento e prazer. Exageradamente falando: já ofereceu álcool e cigarro para seu filho hoje? Vamos continuar insistindo que internet não é droga, não vicia e não faz mal algum para crianças e adultos? Precisamos equilibrar os usos, repetindo: não é sequer sobre os conteúdos escolhidos, é anterior a isso. É sobre a exposição exagerada a qualquer coisa. Mas tudo isso pode ser atenuado se eu te disser que ando às voltas com mais um livro escrito no final da vida por Umberto Eco, um contestador contumaz das redes sociais e dos exageros virtuais. Deve ser isso. Estou fora de contexto e aquém do meu tempo. Sorte é a dele, que viveu bastante e partiu sem ver o quanto “pior do que estava, ficou”.

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