Durante muito tempo, a literatura política parecia dividir o mundo em dois tipos de democracias: aquelas que precisavam construir instituições e aquelas que podiam se dar ao luxo de esquecê-las. O primeiro grupo — formado, sobretudo, por países da América Latina e da Europa Central e Oriental — concentrou as atenções da ciência política nas últimas três décadas. Autores como Mainwaring e Scully (1995) ou Casal Bértoa (2014) analisaram sistemas partidários frágeis, pouco previsíveis, marcados por volatilidade eleitoral e pela dificuldade de consolidar vínculos duradouros entre partidos e eleitores. Já nas democracias consolidadas, a estabilidade era um pressuposto. A alternância de poder, os padrões de competição e a previsibilidade institucional eram vistos como parte do “mobiliário democrático” — tão natural quanto a separação entre os Poderes ou a liberdade de imprensa. Em particular, a baixa volatilidade eleitoral — isto é, eleitores fiéis a partidos ao longo do tempo — era usada como medida para reforçar a institucionalização do sistema partidário alhures. Isso mudou.
Nos últimos anos, o fenômeno da desinstitucionalização partidária chegou às democracias mais maduras. A ascensão de outsiders, o declínio das identidades partidárias e o colapso das antigas coalizões ideológicas alteraram o modo como o eleitorado se organiza. Itália, Alemanha, França e Estados Unidos passaram a enfrentar o mesmo dilema que antes se atribuía aos países “em desenvolvimento”: como manter a estabilidade política quando os partidos perdem credibilidade e as lealdades se fragmentam. Em lugar da previsibilidade, emergem lideranças personalistas, movimentos digitais e retóricas antissistêmicas que corroem as mediações institucionais.
A ironia é que, enquanto isso acontece nas democracias consolidadas, o Brasil parece andar na contramão. As eleições de 2018 — marcadas pela vitória de Jair Bolsonaro e pela desorganização do arranjo partidário tradicional — pareciam prenunciar o colapso definitivo das instituições. A promessa da “nova política”, a negação da negociação e o desprezo pelo sistema partidário indicavam o fim do presidencialismo de coalizão tal como se conhecia. No entanto, o que se seguiu foi quase o oposto: uma revalorização dos partidos políticos como mediadores centrais do poder.
Diante do caos, as elites reagiram institucionalmente. O orçamento impositivo, o fim das coligações nas eleições proporcionais, a cláusula de desempenho partidário e o financiamento público de campanhas deslocaram recursos e poder de decisão para as legendas, fortalecendo sua função distributiva e sua capacidade de sobrevivência. A estratégia foi pragmática: garantir a governabilidade não pelo carisma de um líder, mas pela concentração de recursos a partir do critério de votos e cadeiras na Câmara dos Deputados. Em outras palavras, se o bolsonarismo apostou no colapso do sistema, o sistema respondeu ampliando suas defesas.
É claro que essa “revanche das instituições” não significa uma redemocratização automática da política. A recomposição partidária pós-2018 ainda se apoia em práticas fisiológicas e em arranjos que privilegiam a negociação orçamentária em detrimento de projetos de país. O fortalecimento dos partidos ocorreu mais como mecanismo de autopreservação do sistema do que como instrumento de representação substantiva. Mesmo assim, trata-se de uma inflexão importante: pela primeira vez em décadas, o Brasil parece caminhar para um cenário em que um número razoável de partidos volta a organizar a disputa e a atuar como principal mediador entre o Estado e a sociedade — ainda que por motivos de sobrevivência institucional.
Enquanto democracias tradicionais lidam com a erosão de seus sistemas partidários, o Brasil vive um paradoxo: é na crise que suas instituições redescobrem seu valor, mesmo que, para os mais céticos, isso seja apenas uma reação das elites. Onde líderes personalistas tentam se sobrepor às regras, o sistema — fragmentado, resiliente e, às vezes, cínico — encontra uma forma de se reorganizar. O problema, talvez, seja outro: saber se essa reorganização servirá para fortalecer a democracia ou apenas para organizar a disputa de czares locais.
Leia também:
MAINWARING, Scott; SCULLY, Timothy R. Building Democratic Institutions: Party Systems in Latin America. Stanford: Stanford University Press, 1995.
CASAL BÉRTOA, Fernando. Party systems and cleavage structures revisited: A sociological explanation of party system institutionalization in East Central Europe. Party Politics, v. 20, n. 1, p. 16-36, 2014.
CHIARAMONTE, Alessandro; EMANUELE, Vincenzo. Party system volatility, regeneration and de-institutionalization in Western Europe (1945–2015). Party Politics, v. 23, n. 4, p. 376–388, 2017.
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