Artigo

Bico de pato, pé de pato, grasno de pato

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Enquanto sonha acordado com o prêmio Nobel da Paz, Donald Trump segue rufando os tambores de guerra contra tudo e contra todos, inclusive aliados —menos Israel, é claro. Desde que assumiu o segundo mandato, o seu governo vem disparando as suas armas nas frentes econômica, informacional, cibernética, política, legal, cultural, psicológica e militar. Aliás, as chamadas guerras híbridas são o “arroz com feijão” da política externa estadunidense desde que o país alçou à condição de potência mundial. Portanto, Trump não é um “ponto fora da curva” no histórico da política externa dos Estados Unidos, mas, com ele, a sanha imperialista exibe a sua verdadeira face, e com indisfarçado despudor —sem desculpas ou meias-palavras, a importunação e a violência são praticadas à luz do dia, com orgulho e regozijo. 

A desmesurada soberba e a incontida prepotência, contudo, estão empurrando aceleradamente os países, as regiões, o mundo, enfim, para um conflito bélico mais generalizado e existencialmente perigoso. Os políticos europeus, seus aliados (vassalos?), fazem de tudo para manter em curso a guerra na Ucrânia enquanto promovem uma corrida armamentista vislumbrando um confronto direto com a Rússia nos próximos anos. Na Ásia Ocidental (Oriente Médio), Israel, o seu dileto e incondicional aliado (sócio? vassalo? suserano?), arrasta toda a região para uma guerra total, sinalizando um segundo —e mais intenso— embate com o Irã. No contexto asiático, a estratégia de contenção chinesa consiste na desestabilização do seu entorno, o que vem provocando distúrbios sociais em Bangladesh, Indonésia, Nepal e Filipinas, assim como tensões no Mar do Sul da China e em Taiwan, além dos recentes enfrentamentos entre a Índia e o Paquistão.

A América Latina precisa estar atenta, pois a região não sairá incólume dessa onda imperialista mais desabrida de Trump II. Além da guerra das tarifas —que atingiu particularmente o Brasil, e com evidentes indicativos de uma interferência geopolítica mais ampla e profunda— a “guerra às drogas” é a arma que servirá de pretexto para interferências mais incisivas em alguns países. Esse é o caso da Venezuela —o México também deve estar ter cuidado—, cujo regime bolivariano voltou a ser o alvo mais imediato da sórdida doutrina Monroe.

De fato, desde que Hugo Chávez chegou ao poder, em 1999, e estabeleceu a constituição da República Bolivariana, base do que lá seria denominado de “socialismo do século XIX”, os governos estadunidenses (Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama, Joe Biden e Donald Trump) procuraram, de diversas formas, provocar a “mudança de regime” no país, seja prestando apoio à oposição, impondo ondas de sanções, exercendo pressão pela baixa no preço do petróleo, fazendo ameaças, forçando o isolamento do país, entre outros artifícios, como tentativa de golpe de Estado com intervenção militar, conforme descrevem os livros de memórias de dois membros do primeiro governo trumpista —“A Sacred Oath” (2020), do Secretário de Defesa, Mark Esper, e “The Room Where it Happened” (2020), do Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton.

Ocorre que, mesmo com todo o empenho dos EUA, a oposição venezuelana não conseguiu chegar ao poder pela via eleitoral. As tentativas de destituição do Presidente Nicolás Maduro por meio de manifestações e desestabilização social falharam. A intensa crise econômica provocada principalmente pelas sanções estadunidenses e a consequente onda de migrações massivas causaram severos danos, mas não minaram as bases sociais mais amplas do regime bolivariano —ou seja, parte substanciosa da população apoia o governo, assim como as forças armadas, que se mantêm coesas. E mais, a Venezuela se aproximou da Rússia e da China, que estão ajudando o país a fortalecer a sua estrutura militar e econômica.

Nessa nova investida, Trump recorreu à “guerra às drogas”, um dos eixos da sua segunda administração. Por meio de uma ordem executiva, assinada em janeiro deste ano, carteis de drogas e organizações criminosas transnacionais passaram a ser considerados organizações terroristas estrangeiras ou terroristas globais. Assim, se um cartel for enquadrado nessa designação, é possível autorizar ação militar contra essa organização em solo alheio. Em março de 2025, o mesmo Departamento de Justiça designou o Cartel de los Soles (sabidamente inexistente) como uma organização terrorista internacional, apontando Nicolás Maduro como o seu líder. Em julho, os EUA ofereceram 50 milhões de dólares a quem fornecer informações que levem à captura do presidente venezuelano.

No final de agosto, veio a última peça dessa charada bufa. Os EUA despacharam uma força naval com oito navios de guerra, um submarino nuclear, quase cinco mil soldados, caças, aviões de transporte, de inteligência e abastecimento, além de drones, para o Mar do Caribe. Alegando se tratar de uma operação de combate ao tráfico de drogas, mobilizaram a maior força de guerra já deslocada para a região desde os anos de 1960 trazendo insegurança e instabilidade aos países do entorno.

Desde então, essa força bombardeou duas pequenas embarcações que estavam em águas estrangeiras e cujos tripulantes, venezuelanos, foram condenados à morte de maneira sumária, sem qualquer julgamento.

Guerra às drogas é uma desculpa flagrantemente esfarrapada para realizar um novo cerco ao governo venezuelano. Como uma invasão é bastante improvável, restam as provocações e as ameaças, visando à desestabilização do regime. Mas, o que é mais preocupante para toda a América Latina, não se pode descartar o uso de mísseis para promover a “decapitação” do governo, com o bombardeio de locais que abrigam o Presidente Maduro e membros do seu governo.  Guerra às drogas? Defesa da democracia? Esse bicho tem bico de pato, pé de pato e grasno de pato.

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