O ministro Alexandre de Moraes proibiu, na semana passada, algumas manifestações na Praça dos Três Poderes, em Brasília. O local, extremamente simbólico e estratégico, reúne os principais edifícios do Legislativo, do Executivo e do Judiciário da União. Críticos da decisão logo apelaram para decisão de 2007, do STF, que considerava inconstitucional proibir manifestações no local, tido como o epicentro político do país. A resposta da justiça, à ocasião, tardou. Tratava-se de uma decisão sobre ato do então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, que em 1999 proibia manifestações em pontos estratégicos da capital federal. À época, o PT entrou com uma representação, e a definição do Judiciário viria apenas oito anos depois.
Em sentido oposto ao que definiu, nesse instante o STF parece bastante motivado pelos desdobramentos da tentativa de golpe de Estado que ocorreu no Brasil entre 2022 e 2023. Lembremos que as aberrações assistidas nesta mesma praça em 08 de janeiro de 2023 foi antecedida pela consentida ocupação das portas de quartéis militares e pelo fechamento de rodovias pelo país após as eleições em que o então presidente Jair Bolsonaro não conseguiu se reeleger. Tais gestos comprovam que parcelas da sociedade ultrapassaram limites razoáveis do que se poderia chamar de liberdade de expressão ou manifestação. Parte desse segmento da coletividade, inclusive, é aquela que reclama diuturnamente quando a esquerda ocupa ruas e promove manifestos que atentam contra a liberdade de “ir e vir” dos “cidadãos de bem”. Em meio a uma sociedade cindida, “o inferno é sempre o outro”, como nos diria Sartre em sua peça “Entre Quatro Paredes”. Adaptações à parte, e em meio a possíveis contextualizações, a cultura brasileira afirmaria tranquilamente que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. O que fazer?
A decisão do STF parece responder aos tempos atuais, indicando que sociedades são dinâmicas e mudam de posições. Nesse sentido, se em algum instante parecia inconstitucional proibir manifestações, algo indica que abusamos dessa liberdade e seremos punidos pela justiça por isso. Ou seja: agora não pode! Errado? Podemos debater se faz sentido proibir, mas impor limites combina com a realidade geral das sociedades. Em resumo: liberdades são sempre relativas e carregam consigo certa lógica de elasticidade. Tais movimentos, no entanto, são extremamente delicados. Exageros podem soar como exacerbado alvedrio, e liberdade de menos pode ecoar como autoritarismo e censura. Modular tais aspectos é delicado, cabe ao legislador, mas também caberá a quem executa a lei e a quem a utiliza para julgar a realidade.
Nesse sentido, é importante destacar o quanto parcelas da sociedade são avessas a qualquer tipo de decisão cujo verbo central esteja associado à ideia de proibir, sobretudo quando o tema central está associado aos seus temas de estimação. Aqui está o núcleo da incoerência: quero me manifestar politicamente contra um governo e depô-lo à força, mesmo diante de eleições minimamente idôneas, mas não aceito determinadas manifestações artísticas, por exemplo, que por ter um gosto diferente do meu, torna-se imoral e atenta contra as “tradições”.
Vamos mais longe: faz algumas décadas, não foram poucos os brasileiros que se insurgiram contra o poder público quando o “ato libertador de fumar” foi coibido por leis corretíssimas que impedem o consumo de tabaco em locais públicos ou de interesse público fechados. O mesmo ocorreu com a obrigatoriedade associada ao uso do cinto de segurança nos automóveis. Fumar dirigindo sem sinto parecia um ato geracional libertador. Duas decisões tão próximas colocaram muita gente em sintonia com o desespero, em crítica voraz ao Estado castrador. Bobagem! Liberdade é algo que modulamos via Estado, ou seja, via pacto. E isso é o que nos diz o que é ser mais ou menos livre.
Assim, no exato instante em que temos um ex-presidente às portas da cadeia por tentar dissolver o Estado Democrático de Direito, sob a acusação de tramar em conluio com militares e policiais, símbolos maiores do Estado instituído e teoricamente responsável, não parece razoável dizer que acampamento de deputados da direita, simpatizantes da trama golpista na Praça dos Três Poderes em 2023, é algo a ser permitido. Isso tem pouco a ver com “liberdade de expressão” ou “liberdade de manifestação”. Isso tem relação com a capacidade de a sociedade perceber que existem limites para o uso de suas liberdades. E aqui reside o ponto central desta reflexão.
Sob qual prisma você lê a ideia de liberdade? A primeira opção: a palavra está associada à possibilidade de se “fazer aquilo que é vontade do sujeito”, em associação à ideia de “livre arbítrio”. Será? A definição mais corriqueira está nos dicionários. Veja que interessante o verbete estampado no Dicionário de Oxford, de acordo com a inteligência artificial do Google: “grau de independência legítimo que um cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal” e “conjunto de direitos reconhecidos ao indivíduo, isoladamente ou em grupo, em face da autoridade política e perante o Estado; poder que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a lei”. Contabilize: “grau de independência”, ou seja, não existe independência absoluta para a ação; “grau de independência legítimo eleito como valor supremo ou ideal”, ou seja, trata-se de algo pactuado coletivamente dentro de limites; “conjunto de direitos reconhecidos”, ou seja, são regras e, portanto, têm fronteiras; “poder que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a lei”, ou seja, de novo, tem lei, ou limites.
Conclusão: a liberdade absoluta não existe em qualquer sociedade do mundo. Não há lugar desse planeta, mais ou menos democrático, que não imponha limites à atuação de pessoas e grupos naquilo que proferem ou fazem. É mais do que esperado, no entanto, que assim como existem tetos para o livre agir, existam pisos. Depois de tudo o que passamos em nosso país, pelas mãos de golpistas, é razoável dizer que nesse instante não teremos manifestações correlatas ao que se assistiu entre novembro de 2022 e janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes? Responda você. Eu concordo com a determinação do STF, mas posso estar influenciado pelo quanto torço para que a justiça puna com máximo rigor quem tentou derreter a Democracia no Brasil. Democracia esta que hoje me oferta a liberdade de escrever este texto sem ser punido legalmente, mas provavelmente não existiria se o sonho dourado dos larápios tivesse se concretizado e eu pensasse em dizer o que penso sobre quem atentou contra o Estado Democrático de Direito no Brasil.
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