O tempo, assim como o Kinzhal, está voando a uma velocidade mach-10. E, nessa toada, já chegamos ao final do penúltimo ano do governo Lula III. No plano doméstico, as medidas até aqui adotadas, visando à restauração do aparelho estatal e à retomada das políticas sociais que haviam sido desmantelados pela administração anterior, não surtiram o efeito esperado. A polarização política do país, radicalizada à direita, continua praticamente intacta. Tampouco a reconfiguração de setores da economia e das finanças públicas, assim como os incentivos aos negócios e à produção, e até mesmo a persistente “diplomacia comercial” do país no contexto internacional lograram aplacar as resistências do mercado financeiro e do agronegócio ao governo de centro-esquerda.
Por mais óbvio que pareça, sempre vale lembrar: embora façam substantivas concessões ao assim chamado neoliberalismo e, também, ao neoconservadorismo moral de poderosas igrejas de massas, governos que, de algum modo, estão alinhados com o desenvolvimentismo, o trabalhismo, a social democracia, o identitarismo, a soberania nacional e, nos últimos anos, com o “sul-globalismo” e a multipolaridade são percebidos como ameaças àqueles interesses. Assim, vamos novamente às urnas no ano que vem para decidir uma disputa que tende a ser favorável a outra reeleição de Lula, mas que, além de não estar assegurada, tem tudo para ser muito acirrada, como foi em 2014 e 2022.
De todos os modos, o mais relevante é o seguinte. Se a oposição vencer, o pêndulo das políticas do país mais uma vez se deslocará radicalmente para o polo oposto, como ocorreu a partir de 2015 e, mais acentuadamente, no governo Bolsonaro. Claro, pode-se dizer, quando há rotatividade no governo, as políticas mudam, é natural; contudo, há que se avaliar o tipo e o escopo das mudanças, assim como os seus efeitos nos rumos do país.
Vejamos. Até 2018, como já discuti aqui em outro artigo, as eleições presidenciais brasileiras conformaram um perfil bipolar com uma dinâmica tendente ao centro. Mais precisamente, uma força política de centro-direita, liderada pelo PSDB, disputava o governo nacional com uma força de centro-esquerda, liderada pelo PT. Nesse período de competição e governos centrípetos, a rotatividade no poder acarretava mudanças nas políticas, mas com relativos graus de moderação e continuidade. A partir de 2018, porém, houve uma alteração estrutural nesse padrão, pois a centro-direita se achegou à direta mais radical, formando uma aliança que retirou o protagonismo do PSDB e que passou a liderar a força de oposição ao PT.
Desde então, a rotatividade no governo nacional corresponde a guinadas mais drásticas nas políticas do país, impondo descontinuidades muito mais acentuadas e imoderação. Nesse novo cenário, se a oposição vencer a eleição de 2026, o pêndulo das políticas interna e externa se deslocará radicalmente para o polo contrário, como em 2018; por outro lado, se Lula for o vitorioso, as políticas atuais serão mantidas ou, talvez, ampliadas. Mas, mesmo nesse caso, se alargarmos um pouco mais a perspectiva, vislumbraremos uma conjuntura similar em 2030, quando Lula já não será mais o eterno candidato da centro-esquerda. Nesse possível cenário, a oposição talvez tenha ainda mais chance de vencer a eleição —e lá vai o pêndulo novamente.
Logo, em países cuja política doméstica se caracteriza pela polarização radicalizada —-mesmo que essa radicalização se manifeste em apenas um dos polos, como é o caso brasileiro—, as mudanças de governo correspondem a mudanças radicais nas políticas públicas em geral e na estrutura do Estado. Esse movimento traz impactos no posicionamento geoeconômico e geopolítico do país, afetando negativamente o seu desenvolvimento e a construção da sua soberania. Ou seja, há políticas que não podem depender de governos, devem ser parte do consenso nacional.
No Brasil, alguns breves períodos de coerência e continuidade das políticas internas e externas mais autônomas foram interrompidos por guinadas no sentido contrário. Contemplada em seu largo processo histórico, essa lógica de “stop-and-go” demarca um sentido cíclico frustrante, pois, apesar do árduo esforço realizado para aproveitar as oportunidades e os enormes potenciais do país, sempre retornarmos ao ponto de partida. É como se estivéssemos na pequena cidade de Punxsutawney, onde o “repórter do tempo”, Phil Connors, que foi escalado para cobrir o “dia da marmota”, ficou preso num “feitiço do tempo” (trata-se do filme “Groundhog Day”, de 1993).
Durante anos e anos Phil acordava sempre no mesmo dia, para viver as mesmas coisas. Nada do que ele fizesse ou vivesse, por mais auspicioso ou banal que fosse, era suficiente para mudar a sua patética situação. Tudo o que ele conseguia durante o dia se desmoronava na manhã seguinte, obrigando-o a recomeçar e recomeçar e recomeçar. Phil parecia estar condenado à vida eterna —não à linear, que segue adiante infinitamente e sempre com fatos novos, mas à vida eterna circular, repetitiva, tediosa, maçante. Somente depois de um penoso aprendizado de décadas (talvez centenas de anos!) que o levou a se encontrar consigo mesmo de maneira real, sincera e autônoma, Phil pôde escapar daquela armadilha do tempo. Não é o nosso caso, não ainda. Por mais um bom tempo estaremos aqui no dia da marmota.
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