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Dois imaginários em disputa na COP30 

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

A percepção do Brasil como um território majestático e inesgotável, uma “fronteira” permanente a ser conquistada e desenvolvida, está profundamente enraizada em nossa formação social. Esse imaginário espacial do Brasil (em especial a Amazônia) como “território a ser desenvolvido” é, na verdade, a narrativa que justifica um violento processo de expropriação continuada que limita as potencialidades de um desenvolvimento autônomo do país. É a expressão geográfico-política de um projeto de sociabilidade baseado na constante criação de novas áreas de expropriação dos meios de subsistência, convertendo riqueza natural e social em capital.

Esse modelo é a materialização do que o filósofo japonês Kohei Saito identifica como “ruptura metabólica”. O capitalismo, em sua lógica inerentemente expansionista, rompe o equilíbrio metabólico entre a sociedade e a natureza. Ele não apenas explora o trabalho humano, mas também esgota os solos, contamina os rios e desmata florestas, tratando o ambiente natural como uma externalidade infinita. O “desenvolvimento” da fronteira brasileira, frequentemente pautado pelo extrativismo e pelo agronegócio em larga escala, é um exemplo vívido dessa ruptura, que transfere os custos ecológicos para os ecossistemas e as populações mais vulneráveis.

A “fronteira” brasileira não é uma exceção; é uma regra na dinâmica global do capital. Os países do Sul Global funcionam como a fronteira espacial de transferência dos impactos do “desenvolvimento” do Norte Global. Enquanto as nações ricas discutem transições verdes, a carga material dessa transição recai sobre territórios e povos como os da América Latina e da África. Na prática, o chamado “Green New Deal” tende a ser um imperialismo ecológico renovado, que sob o discurso da sustentabilidade, perpetua a pilhagem dos recursos do Sul, aprofundando a divisão do planeta entre centros e periferias.

Essa dinâmica é agravada com as transferências espaciais e temporais da crise. A “fronteira” é o espaço para onde se exporta a degradação ambiental (transferência espacial) e onde se antecipam recursos, comprometendo a capacidade regenerativa das futuras gerações (transferência temporal). Dessa forma, o “atraso” relativo do Sul é, na verdade, uma condição estrutural para o “desenvolvimento” do Norte, condição de uma acumulação de capital em escala planetária.

Na contramão dessa lógica, a Cúpula dos Povos realizada na COP 30 em Belém do Pará em novembro de 2025 aparece como uma proposta de reparação metabólica e de redefinição de sociabilidade. Trata-se antes de garantir acesso universal ao que é considerado comum e essencial, como saúde, educação, transporte público e alimentação de qualidade, ao mesmo tempo que se reduz drasticamente a produção e o consumo do que é supérfluo, como armas ou IA.

Ao invés de pensarmos a Amazônia, o Brasil e o sul Global como “fronteiras” a serem desenvolvidas predatoriamente, nossos territórios poderiam se tornar palcos de uma nova sociabilidade, baseada na valorização dos saberes tradicionais, na democratização dos bens comuns e num projeto de soberania que invente formas de bem-viver em consonância com nossos ecossistemas.

A “fronteira”, portanto, deixa de ser uma linha de avanço da commodity para se tornar o lugar de um novo começo civilizatório. Ela se funda na ousadia de imaginar um sistema social que entenda que a verdadeira riqueza não está na acumulação infinita de bens, mas na qualidade das relações entre os seres humanos e a natureza que os sustenta.

As lutas indígenas por demarcação, os movimentos camponeses pela reforma agrária e a agroecologia, e as comunidades quilombolas pela titulação de seus territórios são a trincheira prática contra a lógica da expropriação. Eles não estão apenas “preservando a natureza”; estão praticando ativamente uma reparação metabólica, reconstruindo o tecido ecológico e social rompido pelo capital.

A Declaração final da Cúpula dos Povos Rumo a COP30 é a materialização prática e contemporânea da resistência à visão do território como espaço a ser conquistado. Ela se posiciona contra o que chama de “falsas soluções” e coloca no centro do debate as “soluções reais” oriundas dos territórios, estabelecendo um diálogo crítico tanto com a tradição do pensamento brasileiro quanto com as negociações oficiais da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP30).

A Declaração final da Cúpula dos Povos enfatiza outra lógica para a sociabilidade brasileira e do Sul Global, onde o futuro climático do planeta depende não da conquista das “fronteiras”, mas do reconhecimento dos corpos, territórios e saberes daqueles que sempre os habitaram e protegeram.

A participação dos povos originários na Cúpula dos Povos durante a COP30 foi histórica. Estima-se que aproximadamente 3 mil indígenas estiveram presentes em Belém, incluindo 500 representantes com acesso credenciado às negociações oficiais na Zona Azul. Esta mobilização sem precedentes registrou esses povos como vozes ativas da COP30 e demonstram que eles não são apenas vítimas da ruptura metabólica, mas sujeitos políticos ativos que marcam a trincheira de um novo começo de cura para o corpo sociopolítico brasileiro.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.