Artigo

Mayflower tarifário

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

O esperado dia da libertação chegou, em que a economia norte-americana comungaria novamente com seu caminho de liberdade e prosperidade, recuperando fé nessa promessa feita pelos peregrinos do Mayflower em 1620.

Não se sabe ao certo se Donald Trump pretende se libertar da consagrada racionalidade econômica. Fato é que as oscilações do presidente estadunidense fizeram a Bolsa de Valores de Nova York despencar, apesar de amigos próximos terem lucrado bilhões em poucas horas — depois que Trump postou, em sua rede social na Truth Social, o seguinte aviso: “É um ótimo momento para comprar”. Segundo a tal racionalidade, tarifas serviriam para gerar uma fonte própria de receita.

A primeira lei tarifária dos Estados Unidos para taxar importações da Europa, proposta no Senado por James Madison, tinha o objetivo de trazer dinheiro fresco para o tesouro norte-americano e também proteger a produção nacional. O governo de Joe Biden (2021–2024) impôs taxa de 100% sobre os carros elétricos chineses para excluí-los do mercado interno e fomentar uma cadeia local de baterias e veículos. Tarifas serviriam também para ajustar a concorrência a uma determinada lógica comercial.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a democracia de massas saía fortalecida e o sistema de Bretton Woods permitia que os países adaptassem suas políticas econômicas à formação do Estado-providência e ao objetivo do pleno emprego. Em 15 de agosto de 1971, Richard Nixon, presidente do país norte-americano entre 1969 e 1973, anunciou o “choque Nixon”, que acabou com a conversibilidade do dólar em ouro e decretou o congelamento de salários e preços, marcando o fim do Bretton Woods.

Com esse término e a propagação do discurso de que os mercados precisavam ser protegidos, os Estados Unidos criaram instituições globais com um formato que lhes favorecia, liderando assim um processo de reestruturação do capital. Desde então, a política tarifária do país foi marcada por reduções graduais.

Como um dos maiores exportadores do mundo e grande centralizador do comércio global, os Estados Unidos se beneficiariam, em primeiro lugar, com a redução de tarifas. Enquanto o discurso da Organização Mundial do Comércio (OMC) promovia um sistema de comércio multilateral, o país tirava proveito de sua capacidade de flexibilizar os acordos comerciais, apoiado na imposição de suas forças econômica e bélica no sistema internacional, principalmente no Oriente Médio e na América Latina.

Desde a crise financeira de 2008, essa solução demonstrou conter fragilidades estruturais, e, desde então, as elites estadunidenses buscam respostas mediante reformas internas da ordem existente. Os Estados Unidos passaram a adotar uma estratégia de incentivo a uma ordem mundial fragmentada e menos cooperativa. Acreditando na sua capacidade de reverter perdas de domínio na produtividade e na tecnologia por meio do comércio, por serem o maior mercado de consumo do mundo, o país deseja reestruturar as cadeias produtivas recorrendo a negociações bilaterais com tons agressivos.

Na guerra comercial 2018–2019, promovida por Trump contra a China durante o seu primeiro mandato presidencial, os números mostram que os consumidores estadunidenses arcaram com a maior parte dos custos e que o Produto Interno Bruto (PIB) caiu. Segundo a Tax Foundation, organização que analisa tributos, essa queda do PIB traduziu-se na perda de 142 mil empregos.

É interessante observar que, a partir de 2021, a administração Biden manteve as tarifas de Trump contra a China e até, em alguns casos, aumentou-as. O argumento é que determinados setores estratégicos dos Estados Unidos precisavam ser protegidos. Para promover essas políticas industriais, Biden adotou uma série de investimentos estatais em Inteligência Artificial (IA) e infraestrutura de transição energética. Ao mesmo tempo, prosseguiu com a transferência de novas tecnologias de laboratórios e universidades públicas para a esfera comercial, dando continuidade a um projeto que remete aos anos 1970 e 1980, quando foi iniciada a substituição do modelo de investimento nos laboratórios públicos pelo de financiamento da pesquisa privada, realizada por grandes corporações.

Assim, o modelo de um desenvolvimentismo oculto, que cria e amplia parcerias com setores privados rentistas, articula-se com negociações multilaterais realizadas de acordo com um padrão OMC, que vende ao resto do mundo a ampliação da circulação do capital financeiro, mas com redução sensível de investimentos em setores fundamentais como Saúde, Educação e Infraestrutura produzidos como riqueza comum.

Dessa forma, é bobagem falar que estamos diante de uma polarização entre nacionalistas e globalistas. Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990, já afirmava que o nacionalismo se torna legítimo para escapar das normas de uma ordem mundial perversa, que prejudica as empresas nacionais. Quando os interesses das elites precisam se libertar das regras comuns em defesa da liberdade, as regras precisam ser alteradas.

A política atual de Trump visa à reorganização das cadeias produtivas internacionais por meio de alianças geopolíticas unilaterais, generalizando a competição estratégica que está sendo mobilizada desde 2008 pelos Estados Unidos. É verdade que o tom é mais agressivo e teológico. Parece claro também que estamos diante de um novo expurgo macarthista e fundamentalista, que concentra ainda mais a informação e a tecnologia produzidas pelo esforço científico a serviço de alguns amigos do presidente. Mas é ainda à crise de 2008 que se remete a guerra de Trump.

O redesenho dessa estratégia, de radicalizar negociações unilaterais no sistema comercial internacional, pode assumir diferentes direções. Uma pode ser com o livre-comércio e a divisão internacional do trabalho ocorrendo no interior de novos blocos geopolíticos em construção, em uma nova divisão do mundo ao modo guerra fria. A outra forma seria aquela em que a desagregação ocorrerá em pequena escala e em níveis temáticos.

No entanto, ninguém sabe se os mercados financeiros globalizados seguirão essa fragmentação dos mercados comerciais. O que se sabe é que os novos rumos do Mayflower parecem legitimar novamente o direito de espoliação em benefício do povo escolhido WASP (White-Anglo-Saxon-Protestant).

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