Artigo

O presidencialismo de coalizão se esgotou?

Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E
Paulo Peres
é cientista político, especialista em análise institucional e professor no departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em entrevista ao jornal O Globo, em 12 de março de 2014, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi taxativo: “Nosso sistema político é uma catástrofe e, neste momento, completamente disfuncional. (…) Não estamos vivendo mais o presidencialismo de coalizão (…). O que temos é cooptação de partidos para manter o poder”. Àquela altura, vivíamos o rescaldo das incendiárias Jornadas de 2013, que, além de terem provocado a vertiginosa queda na aprovação popular de Dilma Rousseff, impulsionaram a espiral de crise política que até hoje não se desfez por completo.

Timothy Powell, cientista político atento à política brasileira, seguiu a mesma linha de raciocínio numa entrevista também concedida ao O Globo, em 12 de setembro de 2016. De maneira metafórica, Powell ressaltou que o nosso arranjo institucional é propenso a produzir crises de governabilidade, que somente são evitadas (ou mitigadas) quando temos a fortuna de contar com lideranças hábeis na Presidência da República. Disse ele: “Nós, da Ciência Política, superestimamos o presidencialismo de coalizão, sem atentarmos para outros detalhes. (…) Eu aprendi nessa crise que a gente não dava atenção para a qualidade das lideranças. (…) [Por exemplo,] você pode ter um carro ruim e um motorista bom, ou você pode ter um carro bom e um motorista ruim. Quando a gente critica as instituições políticas, estamos criticando o carro. O carro é muito ruim, sabemos que as rodas podem cair a qualquer momento. Tivemos dois grandes estadistas que conseguiram trabalhar com o sistema de coalizão. (…) Lula e Fernando Henrique tiveram um desempenho acima do esperado na gestão da coalizão. Dilma, não. Dilma não soube dialogar com os partidos. Ela foi uma motorista medíocre com um carro ruim. Ia dar problema. (…)”. 

Incapaz de debelar a crise econômica e de se desvencilhar das denúncias de corrupção, Michel Temer viu a popularidade chegar ao rés do chão. Ainda assim — talvez por ser um “melhor motorista” —, o seu governo foi adiante com a “ponte para o futuro”, tendo como sustentáculos os partidos do Centrão. Indignada com esse modus operandi do “toma lá dá cá” elevado à enésima potência a partir de 2015, quando se de início à grande ofensiva do Legislativo pelo controle do orçamento, Marina Silva vaticinou “a falência do presidencialismo de coalizão”, algo que, segundo ela, “nos coloca diante do desafio de fundar um outro tipo de governabilidade” [texto postado no seu blog oficial, em 31 de julho de 2017].

Lá do palácio supremo da Justiça — embalado pelos admiráveis traços de Niemeyer e guardado pela exuberante escultura de Alfredo Ceschiatti —, o ministro Gilmar Mendes, um notório admirador do semipresidencialismo, jogou mais uma pá de cal nesse presidencialismo. Numa sessão da plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), em 29 de maio de 2018, ele fez o seguinte diagnóstico: “Muitas vezes, quando o presidente perde o apoio [legislativo], acabamos tendo o impeachment como o desate da crise [institucional]. Isso é sinal de patologia do sistema [político]. (…) Esse modelo [de governabilidade] se exauriu”.

Com o governo Bolsonaro, essa patologia se agravou a ponto de converter o modelo num morto-vivo que perambula a esmo, sem qualquer serventia prática para assegurar a governabilidade. A fim de escapar de um possível processo de impeachment, em 2020, ano da pandemia e de duros embates entre o seu governo e os poderes Legislativo e Judiciário, Bolsonaro se aproximou do Centrão e entregou o dia a dia do governo e maior controle sobre o orçamento ao presidente da Câmara dos Deputados. À medida que aumentava o seu comando sobre os recursos orçamentários, o Legislativo se tornava mais independente do Executivo, retirando-lhe a peça principal do mecanismo das coalizões presidenciais.

Transformado em zumbi, o presidencialismo de coalizão deu lugar a algo que, Fernando Haddad, ministro de uma pasta central no governo Lula III e observador privilegiado das relações entre Executivo e Legislativo, descreveu desta maneira resignada (e um tanto espantada): “Hoje, a gente vive uma coisa estranhíssima, que é uma espécie de parlamentarismo sem primeiro ministro. (…) A Câmara está com um poder muito grande, (…)está com um poder que eu nunca vi na vida (…). [Este é] o fim do chamado presidencialismo de coalizão”.

E o nobre leitor, o que pensa? O presidencialismo de coalizão está em crise? Ou, mais do que isso, chegou a fim? O seu esgotamento explicaria as dificuldades enfrentadas por Lula no terceiro mandato? Tenho as minhas conjecturas, mas somente poderei explorá-las no próximo artigo, pois já fiquei sem espaço. Adianto, porém, que penso que o presidencialismo de coalizão está tão sólido como nunca. O que ocorreu foi a mudança do eixo de liderança, passando do presidente da República para outro presidente — o da Câmara dos Deputados. Os frequentes embates entre Lula e Lira, portanto, correspondem à tentativa de recuperação do eixo de comando do presidencialismo de coalizão pelo Executivo contra a tentativa de manutenção desse domínio no Legislativo. Esse “cabo de guerra” entre Lula e Lira é, acima de tudo, o orçamento.

Os artigos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da PB. A sua publicação tem como objetivo privilegiar a pluralidade de ideias acerca de assuntos relevantes da atualidade.