Lisboa está arruinada, e dança-se em Paris. […]
Vós gritais: “Tudo está bem” com uma voz lamentável,
O universo vos desmente, e vosso próprio coração
Cem vezes refutou a falácia de vosso espírito.
O terremoto que devastou Lisboa em 1º de novembro de 1755 foi um evento que abalou as fundações do pensamento europeu. Em seu “Poème sur le désastre de Lisbonne”, Voltaire lança um ataque ao otimismo filosófico, então defendido por pensadores como Gottfried Leibniz e Alexander Poper, que pregavam viver-se no “melhor dos mundos possíveis”.
O questionamento de Voltaire não ocorreu no vazio, mas em um espaço público que já começava a se formar. O terremoto de Lisboa foi “a primeira catástrofe global da mídia”, que atraiu a atenção de jornais e viajantes por toda a Europa.
O famoso provérbio francês “longe da vista, longe do coração”, como nosso provérbio popular “o que os olhos não veem, o coração não sente”, encapsulam uma intuição psicológica profunda sobre o funcionamento das emoções humanas. Embora esse provérbio não seja uma citação textual de Voltaire, ele ressoa intensamente com o espírito de seu questionamento após o terremoto de Lisboa. A reação dele foi um esforço filosófico para superar essa distância emocional, fazendo com que a dor distante dos portugueses se tornasse uma questão moral central para toda a Europa.
No mundo contemporâneo, Susan Sontag, em obras como Diante da Dor dos Outros, trouxe essa reflexão a um novo patamar. Se Voltaire buscava criar proximidade onde havia distância, Sontag questiona se a proximidade excessiva e mediada pelas telas não produz um efeito paradoxal: a apatia. Ela argumenta que o fluxo contínuo de imagens de atrocidades pode, em vez de comover, anestesiar o espectador. A violência se torna um espetáculo, um conteúdo entre outros, e a repetição leva ao embotamento da sensibilidade. A “dor dos outros” é consumida e descartada com a mesma velocidade com que novas imagens surgem (e somem quase no mesmo instante, substituídas por outros produtos a serem consumidos e consumados no altar da sociedade do espetáculo).
O conflito em Gaza é o exemplo mais cruento dessa dinâmica na atualidade. Anistia Internacional o descreveu como um genocídio ao vivo, transmitido em tempo real para o mundo. Esta característica de ser “ao vivo” é fundamental: ela elimina a distância física e temporal, colocando a violência na tela de nossos dispositivos de forma imediata e ininterrupta. No entanto, essa superexposição não gerou uma resposta humanitária proporcional, ilustrando as teses tanto de Voltaire quanto de Sontag. A opinião pública é entendida não como um monólito, mas como uma representação fluida e complexa do pensamento associada a produção de afetos na sociedade.
Três teorias são particularmente relevantes para analisar sua formação: a criação de agenda que defende que a mídia influencia quais temas o público considera importantes através da cobertura seletiva e define quais crises humanitárias ganham visibilidade e por quanto tempo permanecem em foco. O enquadramento que diz que a maneira como um fato é enquadrado narrativamente influencia sua interpretação pelo público, assim os conflitos podem ser enquadrados como “guerra contra o terror” ou “crise humanitária”, gerindo diferentes reações. E a espiral do silêncio que descreve como os indivíduos tendem a calar opiniões que julgam minoritárias por medo do isolamento social, criando um ambiente onde criticar uma das partes em um conflito pode ser percebido como polêmico ou impopular, inibindo o debate.
Em 17 de setembro do corrente ano, Guilherme Pereira, professor que interpreta a drag queen Rita Von Hunty, decidiu pausar indefinidamente seu canal, o Tempero Drag. Citando explicitamente o genocídio em Gaza como motivo. Um ato político profundamente significativo dentro deste contexto, como uma tentativa de romper a anestesia coletiva. Ao silenciar sua persona de entretenimento, Guilherme usa o silêncio como uma forma de protesto alto e claro, forçando seu público a confrontar a questão: se um criador de conteúdo para milhões interrompe seu trabalho, a situação deve ser realmente grave. É um esforço para traduzir a empatia em ação concreta, mesmo que essa ação seja a interrupção de uma atividade bem-sucedida.
A jornada da percepção pública, do terremoto de Lisboa ao genocídio televisionado em Gaza, revela um dilema persistente e profundamente humano. Voltaire lutou contra a distância que torna o sofrimento alheio abstrato. Sontag nos alertou para os perigos da proximidade espetacularizada, que pode nos tornar voyeurs passivos da dor.
O caso de Gaza, denunciado como um genocídio ao vivo e a reação de figuras públicas como Rita Von Hunty, mostram que vivemos a tensão entre esses dois polos. A tecnologia venceu a distância física, mas não conseguiu, por si só, vencer a distância do coração. Pelo contrário, ela criou uma nova forma de distância: a da saturação e da impotência. O verdadeiro desafio, portanto, não é apenas tornar visível, mas é encontrar formas de restaurar a humanidade da dor do outro em um contexto em que ela se torna mais um item no fluxo incessante de conteúdo. A luta pela opinião pública continua sendo, como no século XVIII, uma batalha pela sensibilidade, pela interpretação e, em última instância, pela ação que dela pode decorrer.
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