Artigo

Os ‘identitários’

Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.
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Bárbara Dias
é doutora pelo Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-IESP e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o grupo de especialistas que escrevem às quartas-feiras na coluna “Ciência Política” da PB.

Russell Vought, atual diretor do Escritório de Administração e Orçamento (OMB) dos Estados Unidos, acredita que a nação estadunidense está nos estágios finais de uma tomada marxista do país. Vought deixou claro, em seus memorandos, que o objetivo do congelamento dos gastos federais do governo é acabar com o progressismo, a igualdade marxista, os transgêneros e as políticas ambientais.

O manifesto da última campanha presidencial de Donald Trump, a Agenda 47, utiliza a expressão “marxismo cultural” para definir uma teoria que inclui críticas ao racismo; iniciativas ambientais, sociais e de direitos LGBTQIAPN+; defesa de fronteiras abertas; assistência médica universal; e energia verde. Uma das metas descritas na Agenda é “remover todos os burocratas marxistas de diversidade, equidade e inclusão”. Também fala em perseguir os “marxistas, em particular os que infectam as instituições educacionais com insanidade antiamericana”, e credenciar professores que “adotam valores patrióticos e apoiam o estilo de vida americano”.

Esse ponto da agenda do governo Trump parece estar afinado com o diagnóstico sobre como esse populismo de direita pode representar o descontentamento com o fundamentalismo do mercado e com as elites políticas. Entretanto, essa narrativa não consegue entender as características mais marcantes do fermento Make America Great Again (Maga, na sigla em inglês, “Fazer a América Grande Novamente”, em tradução livre) — e também não consegue fazer um balanço das relações entre fundamentalistas do mercado e a alt-right [direita alternativa], que resultaram nas perversões do libertarianismo.

A princípio, parece que os fundamentalistas do mercado não deveriam querer ter nada a ver com o movimento Maga. No entanto, todos os defensores do livre-mercado, da baixa classe média aos oligarcas, têm se solidarizado com pautas da extrema direita. Pautas essas que somam a liberdade individual proprietária com o aumento maciço da coerção estatal, por meio de repressão à imigração, bem como a defesa de uma Constituição com blindagem de pautas econômicas e a promoção de governos autoritários sem restrições legais — além de utilizarem a liberdade de expressão como propagação de teorias conspiratórias nacionalistas, limítrofes ou abertamente brancas, sobre substituição racial e declínio genético.

Na obra recém-lançada Hayek’s Bastards: Race, Gold, IQ, and the Capitalism of the Far Right (em tradução livre, “Os bastardos de Hayek: raça, ouro, QI e o capitalismo de extrema direita”), o historiador canadense Quinn Slobodian apresenta as raízes desse libertarianismo como uma vertente dos fundamentalistas do mercado. Slobodian localiza um momento decisivo no fim da Guerra Fria — para os que acreditavam na primazia dos mercados livres, o colapso do comunismo foi um momento surpreendentemente assustador. Em vez do triunfalismo do fim da história que emanava de setores mais tradicionais, os pensadores da extrema direita alertaram sobre a persistência do comunismo, arguindo que ele havia, simplesmente, sofrido uma mutação.

Os movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 seriam a continuação do marxismo e teriam injetado o veneno dos direitos civis, do feminismo, das ações afirmativas e da consciência ecológica nas veias do corpo político dos Estados Unidos. De acordo com essa visão de mundo sitiada, as demandas igualitárias levavam inexoravelmente ao igualitarismo coletivista. Em outras palavras, ao comunismo.

Assim, a vitória do capitalismo não havia sido total o suficiente, e o esquerdismo ainda gozava de muita influência cultural. Os neoliberais estavam confusos com as demandas persistentes pela reparação da desigualdade às custas da ordem. E começaram a se preocupar com o desenvolvimento de uma cultura hostil aos mercados, com uma população pouco adaptada às suas demandas e, de forma mais geral, com as condições extraeconômicas para a sobrevivência do capitalismo. Também começaram a questionar se algumas culturas, ou até mesmo se certas raças, estariam mais predispostas para o sucesso do mercado.

Essa variação intelectual — que, para Slobodian, resultou no libertarianismo — é essencialmente uma forma de capitalismo racista e oligárquico que não pretende destruir a globalização econômica, mas combater todo traço de coletividade na esfera governamental. Esse grupo projeta um tipo de ethos competitivo para as divisões raciais e nacionais, semelhante ao que fazem com o homem do mercado, produzindo uma base de propaganda a partir dos argumentos das psicologias cognitiva, comportamental e evolutiva e, em alguns casos, da genética e da antropologia biológica para endossar conclusões de exclusão.

Segundo os libertaristas, o livre-mercado não bastaria, por si só, para alcançar uma sociedade livre. Esta precisaria estar inserida em uma estrutura social com condições prévias de homogeneidades étnica e cultural, assim como a nação não poderia ser contaminada pelas diversidades racial e sexual.

Em “The Trump Doctrine and the New MAGA Imperialism” (em tradução livre, “A Doutrina Trump e o Novo Imperialismo Maga”), John B. Foster aponta como o movimento utiliza a baixa classe média estadunidense, mobilizando seus medos em relação aos fantasmas psicossociais referentes à migração e à substituição étnica da população branca. 

O think tank Claremont Institute, principal financiador de Trump, difunde que a equidade racial promove um novo tipo de segregação e discriminação por meio de políticas antibrancos. As políticas públicas valer-se-iam da diversidade visando à destruição do “lixo branco”, o trabalhador da baixa classe média dos Estados Unidos. Por isso, precisaríamos de um neomacarthismo para “limpar” as instituições das teorias críticas ao racismo e de defesa da identidade de gênero, e voltar à genuína ordem das coisas.Os libertaristas conseguiriam, então, mobilizar o topo da pirâmide e a classe média baixa em torno de um CEO-chefe de reality show, com o objetivo que a própria política vire uma experiência distópica, mas com vantagens para o topo. Assim, pode-se colocar firmemente as massas em seu devido lugar e deixar o mundo verdadeiramente seguro para as minorias, de fato, ameaçadas deste mundo: os anglo-saxões bilionários.

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