Gingado de defesa e resistência

20 de junho de 2025

E

Ela é, desde 2008, patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2008. Pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o reconhecimento como patrimônio cultural da humanidade veio em 2014. A capoeira é uma das mais vivas expressões legadas pelos africanos escravizados e transformou-se em parte indissociável da cultura brasileira.

Edison Nascimento, conhecido como Mestre Sarará e atual presidente da Federação de Capoeira do Estado de São Paulo (Fecaesp), explica que a mistura de arte marcial, dança e música surgiu no Brasil colonial, entre os séculos 16 e 17. Considerada expressão cultural e esporte, a capoeira é o resultado da fusão de diversas tradições africanas, especialmente daquelas vindas das regiões que hoje formam Angola e Congo, acrescida de influências indígenas e do ambiente colonial brasileiro. “Era uma forma de resistência, disfarçada de dança, que possibilitava manter a cultura e treinar habilidades de combate sob o olhar opressor dos senhores de escravos”, conta.

“Falar da capoeira no Brasil é falar da ancestralidade. Em termos históricos, podemos dizer que ela surgiu no Brasil a partir da época colonial, mas também faz parte de uma variação que já existia, não com este nome, na África”, situa o filósofo e educador Marcos da Silva e Silva, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). O professor lembra que não podemos falar simplesmente em treinamento para uma eventual luta contra a escravidão. “Isso seria um pouco abusivo. O mais certo é falar que a capoeira surgiu como uma forma de defesa de ataques no período escravocrata”, pontua. “Uma dança camuflada em forma de defesa e, por vezes, uma defesa camuflada em dança. É um movimento dialético do corpo, de defesa e de ataque, mas também de alegria”, define.

Para os especialistas, uma das principais riquezas da capoeira consiste exatamente em sua multiplicidade de significados. “Ela é tudo ao mesmo tempo. Pode ser luta, com golpes, esquivas e estratégias de combate. Pode ser dança, com ritmo, musicalidade e movimentos fluidos. Pode ser esporte, quando praticada de forma competitiva e regras específicas. E pode ser manifestação cultural”, detalha Sarará. “Portanto, capoeira é uma expressão corporal afrobrasileira multidimensional, que integra arte, luta, música, história e identidade”, acrescenta o capoeirista.

Ao som do berimbau

Não existe capoeira sem música. É a melodia característica que guia o jogo. Os principais instrumentos que dão ritmo a esse misto de dança e luta são o berimbau — há três tipos, gunga, médio e viola —, o atabaque, o pandeiro, o agogô e o reco-reco. As músicas contam histórias, ensinam valores, homenageiam mestres e estabelecem o ritmo e a energia da roda.

Sarará lembra que a roda de capoeira é um “espaço sagrado e social”. “É mais do que espaço de luta. É ritualística, pedagógica e comunitária. Nela são transmitidos saberes orais, regras de convivência, respeito aos mais velhos e valores como coragem, malícia e sabedoria”, argumenta.

Originalmente praticada apenas por africanos escravizados, aos poucos foi ganhando simpatizantes para além do nicho. Silva, da ESPM, destaca que há indícios de que a capoeira começou a ultrapassar as fronteiras da negritude já nos anos 1820, portanto, antes da abolição. “Mas, com a Proclamação da República [1889], foi entendida como vadiagem”, relata Silva. “Com a abolição [1888], muitos ex-escravizados passaram a viver nas ruas e continuaram praticando a capoeira, o que levou à sua criminalização no início do século 20”, descreve Sarará.

O mestre capoeirista enfatiza que o reconhecimento e o prestígio social começaram a ser conquistados, sobretudo, a partir das décadas de 1930 e 1940, com esforços que sistematizaram a prática, fazendo com que esta pudesse ser entendida como atividade educativa, cultural e esportiva. “Foi nesse momento que a capoeira começou a se abrir para outras classes sociais e públicos mais amplos, praticada, inclusive em escolas e centros culturais”, narra Sarará.

Silva aponta que, ao ser praticada por outros grupos, a capoeira passou a ser entendida como arte marcial, envolvendo corpo e dança. A partir do momento que passou a ser vista como esporte, uma luta ao estilo brasileiro, tornou-se mais presente. “Hoje, qualquer pessoa que vai a Salvador ou regiões de maioria negra vai ver a capoeira sendo jogada, gingada como entretenimento”, reforça.

Além de Brasil e África

Segundo estimativas da Fecaesp, há pelo menos 1 milhão de praticantes no Brasil, entre profissionais, alunos regulares, mestres e simpatizantes. A capoeira espalhou-se pelo mundo e, hoje, está presente, ainda que de forma pontual, em mais de 160 países. “Em muitos países ela é símbolo de resistência e da arte brasileira. Grupos e mestres brasileiros atuam no exterior promovendo rodas, cursos, batizados e intercâmbio cultural. Isso transformou  a capoeira em uma das principais exportações culturais do País”, pontua Sarará.

O mestre frisa que, atualmente, a capoeira é amplamente incluída em projetos sociais, escolas públicas, por organizações não governamentais e instituições de ressocialização, o que se deve ao reconhecimento de que a prática ensina disciplina e trabalho em grupo, promove respeito às diferenças e estabelece consciências corporal e histórica. “Especialmente em comunidades periféricas, é um instrumento poderoso de autoestima e transformação social”, afirma.

Segundo Sarará, a expansão para além da população negra não significa que ela deixou de ser uma expressão cultural de identidade étnica. “A capoeira ainda mantém um forte componente identitário, especialmente ligado à cultura afrobrasileira, à resistência histórica e à afirmação de ancestralidade. Ela continua sendo um espaço de valorização da negritude, da memória coletiva e da construção de pertencimento”, ressalta.

“Ainda há, sim, uma questão identitária”, completa Silva, observando, porém, que não se trata de uma identidade fechada em origens étnicas, mas um patrimônio nacional e cultural, além de étnico. “Sempre que vejo a roda de capoeira, fico atento aos objetos simbólicos, aos instrumentos, aos cânticos. A roda é circular, o que significa que é preciso respeitar aqueles que já estiveram e permanecem nela”, contextualiza.

Ainda que tenha crescido e se espalhado, o componente étnico é fundamental, destaca Sarará. “A capoeira ganhou múltiplas formas de expressão, o que pode dar a impressão de descaracterização em alguns contextos mais esportivos. Mesmo assim, nos grupos tradicionais e nas rodas autênticas, a identidade continua sendo essencial, com seus rituais, cantigas, toques de berimbau e ensinamentos históricos”, assegura.

Práticas variantes

De forma geral, há duas vertentes principais da capoeira. A Capoeira Angola é a mais próxima das raízes africanas, com jogo mais lento, ritualístico e simbólico. “Preserva a malícia, o corpo próximo ao chão e um forte vínculo com os elementos tradicionais, como os cânticos e a musicalidade”, explica Sarará. Já a vertente regional, desenvolvida a partir dos anos 1930, é sistematizada, com movimentos mais atléticos e rápidos. “Foi fundamental para tirar a prática da marginalização, apresentando-a como arte marcial brasileira”, contextualiza o mestre. “A capoeira é um patrimônio de cada brasileiro e, especificamente, dos brasileiros que se identificam com o povo preto”, finaliza Silva.

Edison Veiga
Débora Faria
Edison Veiga
Débora Faria