Atento estudioso da cultura popular, o historiador e sociólogo Luís da Câmara Cascudo (1898–1986) escreveu: “Certo é que portugueses e africanos vieram para o Brasil conhecendo o cuscuz; aqui é que ele se fez de milho e molhou-se no leite de coco”. O tradicional prato do norte da África foi incorporado à cultura gastronômica brasileira de maneira antropofágica, na pura lógica defendida pelos modernistas — tal como a miscigenação que deu diversidade única ao povo brasileiro, a receita original se moldou (e foi moldada) ao sabor dos ingredientes locais, recebendo a criatividade autóctone e se adaptando aos paladares nacionais.
Desse encontro de novos sabores, surgiram duas versões: o nordestino e o paulista. “A origem do cuscuz está ligada aos povos do norte da África [principalmente nos atuais Marrocos, Argélia e Tunísia], feito originalmente com a sêmola do trigo durum e muito popular por aqui como cuscuz marroquino, servido com legumes cozidos ou carnes”, explica o chef de cozinha Marcelo Neri, professor de Gastronomia na Universidade Presbiteriana Mackenzie. No Brasil, o prato desembarcou por duas vias. Os colonizadores portugueses já apreciavam o prato, e com a ocupação árabe na península Ibérica, a iguaria se difundiu no país. Paralelamente, os negros escravizados também conheciam o cuscuz.
O ponto principal para a adaptação do preparo em terras nacionais foi a matéria-prima, a sêmola de trigo duro — ou a falta dela. “A semolina, que é o tipo de farinha de trigo usada para o preparo, era cara e difícil de ser encontrada [no Brasil] e foi substituída pela de milho, alimento já consumido pelos indígenas. Na receita paulista, entrou também um pouco da farinha de mandioca, outro produto bastante consumido pelos nativos brasileiros”, pontuam os pesquisadores Anatercia de Sousa Santos, Carolina Fernandes da Silva, Débora Alves da Costa, Dulcineia Pereira da Silva, Manuel Filho Alves da Silva, Antonio Carlos Andrade Conceição e Victor da Silva Almeida, no artigo acadêmico “Cuscuz: uma viagem da África até o Brasil”, publicado em 2023. “O cuscuz nordestino nasce muito parecido com esse cuscuz original africano, com a farinha hidratada ganhando complementos saborosos, como charque, carne seca, jabá, ovo e manteiga, mas também doce, com adição de leite de coco”, escrevem os autores.
O paulista, por sua vez, sofreu mais mudanças. “Ganhou não só a farinha de mandioca, mas um molho feito com tomates, cebola, ovos, ervilha, salsinha, sal e peixes”, ensinam. O preparo é finalizado com um aspecto específico, porque a receita prevê uma forma de furo no meio. “Em forma de pudim”, compara Neri. O professor lembra que, a exemplo do virado à paulista, essa versão também pode ter sido uma evolução do necessário costume dos bandeirantes de carregar a chamada “refeição itinerante” nas expedições, com o “farnel composto por farinhas de porco e de milho com peixe e pimenta”, compara.
“A história do cuscuz no Brasil é marcada por resiliência e transformação, revelando não apenas a migração de ingredientes, mas também a fusão de tradições gastronômicas”, argumentam os autores do artigo acadêmico. Eles concluem que degustar esse prato é uma lembrança de que “a culinária é uma expressão poderosa, capaz de contar histórias de migração, adaptação e, acima de tudo, união entre os povos”.
Nordeste ou São Paulo?
Na constante busca por uma alimentação mais saudável, vira e mexe surge um novo preparo queridinho, especialmente nas redes sociais. E é nessa onda que o cuscuz nordestino, café da manhã padrão em muitos Estados, ganhou fãs em todo o Brasil. Com apenas 100 calorias a cada 100 gramas, e alto poder de saciedade, o alimento ganhou espaço no cardápio se comparado ao pão, que tem mais de 300 calorias nos mesmos 100 gramas.
Já a fama renovada da versão paulista veio em tom de piada. Em 2023, o prato foi considerado o pior do Brasil, de acordo com pesquisa do site norte-americano TasteAtlas. O levantamento, segundo o próprio site, se baseia nas classificações do público, que ignora bots ou avaliações “patrióticas locais” e dá “valor adicional” às classificações do público nomeado como “conhecedores de comida”. O cuscuz paulista, que se tornou patrimônio do Estado de São Paulo, teve uma modesta nota 3 na avaliação de 5.139 mil leitores do site.