O brasileiro que disse ‘Xis’

30 de maio de 2025

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Até as primeiras décadas do século 20, a saúde pública brasileira via-se às voltas com uma doença difícil de controlar: a tuberculose. Contagiosa e com alto índice de mortalidade, num contexto de êxodo rural, a patologia espalhava-se pelas grandes cidades do Brasil. A principal tática era detectá-la o mais precocemente possível para não apenas oferecer um tratamento que poderia elevar as chances de sobrevivência, como também reduzir o isolamento social que era imposto para evitar a transmissão.

A tuberculose é causada por um bacilo. Quem desenvolve a doença torna-se um transmissor pela tosse, pela fala e pela própria respiração. Por isso, é considerada uma patologia de alto contágio. Atualmente, o modo mais comum de detectar a moléstia é um exame laboratorial chamado baciloscopia, em que uma amostra do escarro é analisada.

No entanto, antigamente, não era assim. O procedimento mais eficaz para descobrir a presença da doença era uma radiografia do pulmão. Só que, se era importante fazer testes em massa, havia duas dificuldades: a exposição à radiação, que poderia ser um problema se fossem realizados com frequência, e o custo das chapas de raios X, cuja imagem, obrigatoriamente, ficava do tamanho real do tórax do paciente.

Da chapa ao filme

Para resolver a questão, um brasileiro inventou um novo método: a abreugrafia. O médico Manoel Dias de Abreu (1891–1962) trabalhava no antigo Hospital Alemão do Rio de Janeiro e estava no epicentro da doença no Brasil naquele período. De acordo com o livro O mestre das sombras — um raio-X histórico de Manoel de Abreu (SPR, 2012), a tuberculose matava, na década de 1920, só na capital do País, 300 pessoas a cada 100 mil habitantes anualmente.

A solução, consolidada em 1936, após mais de dez anos de tentativas e ajustes, era simples: em vez de registrar a imagem obtida em uma chapa de radiografia, era apresentada em uma fotografia, de dimensão reduzida, a partir da figura que aparecia na tela fluorescente do equipamento de raios X. Com isso, o tempo de exposição do paciente era menor, porque o processo fotográfico é mais ágil e mais barato, já que os filmes fotográficos custam menos e a revelação e o registro, em dimensões menores, também implicavam menores investimentos. O método foi batizado, anos depois, de abreugrafia, em homenagem ao seu criador.

“O exame foi fundamental para os diagnósticos precoces da tuberculose e do câncer de pulmão. A abreugrafia permitiu diagnosticar e tratar, no início da doença, as pessoas com tuberculose que não apresentavam sintomas”, conta o médico Salmo Raskin, professor na Faculdade Evangélica Mackenzie do Paraná, diretor científico da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica (SBGM) e presidente científico do Departamento de Genética da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). “[A técnica] ajudou a conter a disseminação da tuberculose, uma doença que matava muitas pessoas”, reforça o especialista.

Abreu batizou o próprio invento com o complicado nome de roentgenfotografia — o físico alemão Wilhelm Röntgen (1845–1923) ganhou o Nobel de Física em 1901 por ter descoberto os raios X. De acordo com a Sociedade Paulista de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (SPR), a metodologia foi aprovada pela Sociedade Brasileira de Tuberculose em 2 de dezembro de 1936, e, em março do ano seguinte, foi inaugurado o primeiro posto de cadastramento torácico, na Cidade do Rio de Janeiro. Em 1939, o Congresso Nacional de Tuberculose decidiu oficializar uma nomenclatura que reverenciasse o inventor brasileiro, consolidando o nome abreugrafia.

“Ao longo do tempo, recebeu diferentes nomes, como fotofluorografia, radiofotografia e, no exterior, termos como mass radiography, em inglês, schermografia, em italiano, e radiophotographie, em francês”, contextualiza a SPR. “O nome abreugrafia foi oficialmente proposto durante a sessão de abertura do I Congresso Nacional de Tuberculose, em 1939, realizado pela Sociedade Brasileira de Tuberculose. O presidente do evento, Ary Affonso de Miranda, sugeriu que o procedimento passasse a ser chamado assim em homenagem ao seu criador, Manoel de Abreu”, explica a entidade.

Segundo De acordo com a SPR, o novo nome “foi rapidamente aceito no Brasil e também adotado em países como Argentina e Uruguai, graças ao apoio de médicos influentes dessas nações”. E, no Brasil, “a abreugrafia tornou-se tão popular que os médicos passaram a referir-se ao exame simplesmente como ‘o Abreu’, utilizando no dia a dia expressões como ‘já fez o Abreu?’ ou ‘o que revela o Abreu?’”, enfatiza a SPR.

“O objetivo do doutor Abreu era realizar radiografias em larga escala, especificamente dos pulmões, reduzindo o custo e o tempo, pois, no começo do século 20, a tuberculose era um problema de saúde pública muito grave”, reforça o médico Raskin. “O custo foi reduzido, pois os filmes fotográficos eram mais baratos do que os radiográficos. Além disso, era um método portátil, o que permitiu o uso em larga escala”, detalha.

Indicado ao Nobel

Ainda de acordo com a SPR, a abreugrafia era utilizada principalmente para detectar tuberculose em estágios iniciais, mas também podia revelar outras doenças pulmonares e cardíacas. Assim, a técnica mostrou-se valiosa na identificação precoce de problemas respiratórios e na triagem populacional para controle epidemiológico.

“[A solução] foi adotada universalmente”, acrescenta Raskin. A inovação espalhou-se e transformou-se em uma ferramenta importante no combate à tuberculose. “Em resumo, o seu baixo custo e a facilidade de operação possibilitaram os testes em massa. E o diagnóstico precoce da doença possibilitou o início do tratamento antes que fosse tarde demais, reduzindo, assim, o número de mortes”, pontua.

Abreu foi indicado ao Nobel em três ocasiões — 1946, 1951 e 1953 —, mas nunca conquistou o prêmio. No Brasil, a abreugrafia era exigência para admissão em escolas e empregos até o fim dos anos 1970. “A técnica foi inovadora, porque era mais simples e eficiente”, avalia a SPR.

Com o avanço dos processos laboratoriais, a abreugrafia foi caindo em desuso. Em 1974, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a recomendar que pacientes não fossem mais submetidos ao procedimento em razão dos riscos da radiação. Se a invenção de Abreu foi a solução para exames de pulmão em sua época, por uma ironia do destino foi um mal pulmonar que vitimou o médico. Fumante contumaz, morreu de câncer no pulmão.

Edison Veiga
Débora Faria
Edison Veiga
Débora Faria