Há cerca de um mês, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, surpreendeu parte dos mercados globais ao anunciar tarifas para importação sobre uma série de produtos manufaturados da China. Equipamentos médicos, dispositivos de captação de energia solar, baterias e até matérias-primas (como aço e alumínio), agora, terão de pagar impostos mais altos para entrar no país. Contudo, o que aqueceu o debate econômico foram os carros elétricos. E não se trata de um assunto banal: atualmente, esse tipo de veículo é, segundo pesquisas recentes, a grande fronteira da indústria chinesa que já fez as vendas da norte-americana Tesla — até então a principal fabricante de automóveis elétricos do Ocidente — caírem 20% no primeiro trimestre do ano. Dados da International Energy Agency (IEA) apontam que 60% de todos os carros movidos a eletricidade vendidos no mundo, hoje, foram fabricados do gigante asiático.
Foi por isso que Biden decidiu criar um imposto de 100%, já na fronteira, para qualquer veículo desse tipo que tenha origem chinesa. Segundo assessores da Casa Branca, sede do governo estadunidense, a medida visa proteger empregos em uma indústria vital do país: a automobilística. A China respondeu, pouco tempo depois, afirmando que a decisão afeta gravemente as relações bilaterais entre as duas potências. Além das questões geopolíticas, a tarifa de Biden reacendeu uma discussão que vem ganhando cada vez mais espaço entre economistas e especialistas em Relações Internacionais ao redor do planeta. Estaria o mundo voltando à era dos protecionismos nacionais? Dentro desse fenômeno, quais são as oportunidades e os limites do Brasil?
Instituições globais relevantes alimentam essas análises com um certo alarmismo: na metade do ano passado, por exemplo, o Banco Mundial publicou um artigo repleto de dados afirmando que as “tensões comerciais e os desafios geopolíticos elevam preocupações sobre os rumos da globalização”. O banco chamava o momento de “desglobalização”, isto é, uma conjuntura mundial marcada pela redução da interdependência econômica entre os países — operada, sobretudo, por medidas protecionistas, como o que ocorre atualmente nos Estados Unidos. Não foi a primeira vez que o termo foi usado de forma tão evidente. Ainda em janeiro de 2023, o Fórum Econômico Mundial chegou a ir mais longe, afirmando, em um relatório, que via “sinais fortes de que a era da globalização estava chegando ao fim”.
Fontes ouvidas pela PB nas últimas semanas se dividem entre as respostas possíveis a essa discussão. André Sacconato, assessor econômico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), por exemplo, argumenta que “desglobalização” é um termo muito forte para se referir a um fenômeno que, na realidade, é mais restrito às relações que o mundo tem com a China nos dias atuais. “Não existe, principalmente nos países desenvolvidos, nenhuma intenção de diminuir o comércio global. As tarifas estão subindo apenas para os produtos chineses e de seus aliados, como a Rússia. É mais uma estratégia localizada, regionalizada, do que global”, explica. “Não é trivial que, nesse mesmo movimento, os países desenvolvidos, sobretudo os Estados Unidos, estejam incentivando nações em desenvolvimento a se inserirem nas cadeias produtivas, como Índia, México e Coreia do Sul. É até nesse sentido que o argumento [como o usado por Biden no caso das tarifas a produtos chineses] de que estão criando regras protecionistas para ‘preservar empregos na economia interna’ fica no campo da narrativa. O que está sendo feito, de fato, é criar uma defesa para problemas futuros com a China”, completa o economista.
Ainda na percepção de Sacconato, o Brasil poderia ter se aproveitado mais do momento de reestruturação das cadeias produtivas globais, seja mediante participação mais ativa em novas posições, seja por meio de acesso a produtos importados mais baratos. De acordo com o assessor, contudo, o País não fez nem uma coisa, nem outra. “De um lado, dava para se reposicionar como um dos substitutos da China, ainda que não na mesma escala. Havia condições para isso. Por outro, temos um protecionismo que nos impede de usufruir de produtos que poderiam chegar mais em conta aqui, como os próprios carros elétricos — os quais a Indústria nacional não dispõe de tecnologia para produzir e que, neste momento, contam com subsídios do governo chinês. Não aproveitamos nenhum dos cenários”, critica.
No começo de maio, o Conselho Superior de Economia, Sociologia e Política da FecomercioSP, do qual o economista é um dos coordenadores, organizou uma reunião para debater o assunto com a diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes), Sandra Rios. O grupo é ligado ao Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), think tank sediado no Rio de Janeiro. Sandra também não acredita que o mundo esteja necessariamente se desglobalizando, e pelo mesmo motivo apontado por Sacconato. “É um fato que os Estados Unidos estejam voltando a algum grau de protecionismo”, disse ela na ocasião — que ocorreu, vale dizer, antes do anúncio de Biden sobre as tarifas a produtos chineses. “Mas essas são medidas focadas em questões geopolíticas, que se explicam por lógicas de segurança nacional.”
De acordo com ela, porém, alguns elementos novos na circulação mundial de mercadorias são inequívocos, como a própria diminuição da força da indústria chinesa no fluxo de importações ao Norte Global, substituída por outros países da Ásia e até pelo México, por exemplo. Sandra defendeu que esse processo deveria interessar mais o Brasil. “Está ocorrendo uma grande revisão das cadeias de valor da qual poderíamos nos beneficiar caso adotássemos políticas adequadas.” Seguindo o raciocínio de Sacconato, a diretora do Cindes foi bastante crítica à postura brasileira, principalmente por manter tarifas de importação para uma série específica de produtos há décadas, como notebooks e tablets, taxados em cerca de 14%. Bicicletas, que já chegaram a ter taxas de 35%, hoje estão na casa dos 20%.
Sandra também elencou dispositivos legais que exigem que as compras do governo sejam realizadas, obrigatoriamente, de fornecedores da Indústria nacional e concessões de benefícios fiscais para setores. “O Brasil é um ponto fora da curva [no mercado global]”, afirmou. “As tarifas são elevadas tanto para insumos e bens de capital como para consumo. É totalmente incompatível com a ideia de se inserir ativamente nas cadeias produtivas globais.”
Tanto a diretora do Cindes quanto economistas ligados à FecomercioSP apontam que o problema está em manter a estrutura protecionista a um setor que, ao contrário do esperado, estacionou. Em 1985, a manufatura chegou a corresponder a um terço (36%) do Produto Interno Bruto (PIB) do País, margem que foi de 11% em 2021, segundo dados da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Esse movimento decrescente, aliás, permanece.
O economista André Roncaglia, professor de Economia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), tem uma visão diferente. Para ele, é difícil definir uma medida segura para separar países protecionistas ou abertos ao mercado internacional, mas é fato que o Brasil sofreu retração na base de proteção. Roncaglia cita, por exemplo, um estudo recente da Organização Mundial do Comércio (OMC) que mostrou como a tarifa média aplicada a produtos importados no Brasil, em 2023, era de 11,1%. “É alta, mas não muito maior do que alguns países em desenvolvimento, como o Vietnã e a Indonésia”, explica, apontando taxas de 9,6% e 8%, respectivamente. “Em alguns casos, nossas tarifas são mais baixas do que a de alguns países desenvolvidos”, continua. É o caso da Coreia do Sul que, segundo a instituição, impõe uma taxa média de 13,4% em suas taxações.
Na avaliação do economista, há diversos fatores inclusos nessa análise, como o impasse do País na hora de exportar bens de alto valor agregado, o que acaba limitando a capacidade de importação, na medida em que, se o Brasil fosse demasiado aberto, geraria um desequilíbrio na balança de pagamentos. É assim que, de um lado, entrariam no mercado nacional itens altamente tecnológicos, como carros elétricos e computadores; enquanto, de outro, sairiam commodities, como minérios de ferro, soja e petróleo — que correspondem a quase metade de todas as vendas nacionais ao exterior.
“Temos dificuldade de exportar coisas caras. Nossa tarifa não está protegendo a Indústria, mas oferecendo isonomia, regulando a pressão externa para não inviabilizar totalmente as indústrias domésticas”, afirma Roncaglia. Ele lembra, por exemplo, da agenda de abertura comercial implementada durante o governo Fernando Collor de Melo (1990–1992), que, dentre outras medidas, gerou um fenômeno chamado à época de “desnacionalização das empresas nacionais”. “Houve um corte violento que abriu o País à concorrência internacional, cujo resultado foi o agravamento da nossa desindustrialização. As multinacionais chegaram e compraram as nossas empresas, exportando os empregos.” O professor da Unifesp ainda aponta outro fator estrutural na sua percepção do tema: o tamanho do Brasil. De acordo com ele, há uma intuição muito presente na teoria econômica de que países grandes tendem a ter mercados internos mais robustos. Assim, o resultado costuma ser uma produção voltada mais para dentro do que para fora. O economista aponta, por exemplo, um gráfico, de uma década atrás, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em que países de dimensões maiores — como Estados Unidos, México e China — aparecem com porcentagens menores de participação da balança comercial no PIB. “É só o olhar os países com menor fluxo de comércio. São todos grandes.”
Há algumas semanas, o economista Flávio Comim participou de um encontro com Justin Lin, chinês que trabalhou por muitos anos com desenvolvimento no Banco Mundial, no qual chegou a ser economista-chefe. O evento, organizado pela Universidade Ramon Llull, em Barcelona, na Espanha, onde o profissional leciona Economia para alunos de cursos relacionados a negócios, tinha o objetivo de discutir a desglobalização. “Gerou uma discussão muito interessante”, conta Comim.
Segundo o professor, que acabou de lançar, ao lado de outros dois autores, o livro Social Choice, Agency, Inclusiveness and Capabilities, pela Cambridge University Press, não se trata necessariamente de desglobalização, mas de uma transformação significativa na estrutura produtiva que o planeta se acostumou a operar, pelo menos, nas últimas duas décadas. “O modelo de globalização baseado na terceirização de cadeias globais mudou porque muitos países de destino, como a China, passaram a querer comandar os próprios processos e desenvolver os seus interesses”, observa. “A taxação de Biden diz mais sobre os Estados Unidos do que sobre o resto do mundo”, continua.
Essa lógica, então, lhe permite olhar para o País em uma perspectiva parecida à de Roncaglia, embora de forma mais pragmática. “Dizer que o Brasil é protecionista é um pouco fora de proporção”, diz, defendendo que, na verdade, todos os países usam instrumentos para lidar com os próprios interesses geopolíticos — os quais, em alguns casos, são de ordem econômica. É assim que se explica, por exemplo, a proibição do governo norte-americano à exportação de chips, por parte de algumas empresas do país, à gigante chinesa Huawei, decretada em maio. Isso, porém, não significa que o protecionismo brasileiro se isenta de críticas. “O problema é que o protecionismo à brasileira é obsoleto, ou seja, muito tarifário, mas com pouco sentido estratégico de longo prazo. Nossa política econômica tem sido muito reativa, mas é difícil relacioná-la com sentido público, com a ideia de um desenvolvimento de longo prazo”, reclama Roncaglia.
É o mesmo argumento de Comim para um certo pessimismo com quanto à possibilidade de o País aproveitar a reestruturação para se inserir nas cadeias produtivas globais. “Não vejo o Brasil fazendo o mesmo investimento em capital humano que a China faz décadas atrás, assim como a Índia. O conservadorismo e a corrupção institucionalizada não deixam o País fazer os investimentos necessários para entrar na corrida tecnológica que caracteriza esses movimentos [como a desglobalização]”. “Há oportunidades, mas os interesses cleptocráticos nacionais são uma barreira decisiva”, finaliza.