Pelé, documentário biográfico que chega à Netflix, mostra a trajetória do extraordinária jogador, de jovem craque a rei do futebol. Produzido pelo premiado cineasta Kevin Macdonald, filme tem como pano de fundo uma era turbulenta da história do País. Um perfil do atleta foi publicado na edição #450 da revista PB. O texto, agora publicado no site, é assinado pelo jornalista e escritor Jorge Caldeira.
Menino, eu vi. Tinha talvez cinco anos, o que daria algo como 1960 ou 1961. Como parte da família morava em Santos, íamos sempre para lá. Dois tios eram orgulhosos proprietários de cadeiras cativas no estádio Urbano Caldeira, arranjaram ingressos para o meu pai e o meu irmão. O Chevrolet 1954 azul foi deixado no estacionamento da Beneficência Portuguesa, que também ficava na Vila Belmiro.
Era um estádio bem mais modesto que o Pacaembu, onde já havia ido. Mirrado mesmo. Arquibancadas de dois andares, só de um lado do campo e atrás de um dos gols. Na outra lateral, apenas um lance pequeno. Atrás de um gol, um muro precário, com altura suficiente para impedir que as pessoas vissem o jogo da rua. Cada chute mais alto, uma bola sumia na rua. Campo maltratado, iluminação de boate.
Entram os times. Santos e um dos pequenos da época (talvez São Bento de Sorocaba, XV de Piracicaba, Ferroviária de Araraquara, Jabaquara de Santos. Vi todos, não lembro exatamente qual foi o primeiro, mas não importa). A história era sempre a mesma.
Havia Pelé. Entrava em campo, todos olhavam para ele. Impreterivelmente. Inapelavelmente. E ali ficavam os olhos. Ele sabia. Todos sabiam. Os adversários sabiam mais do que todos.
Como diria Arnaldo Cezar Coelho, a regra era clara. Tudo dependia de Pelé. Se ele estivesse num dia normal, lá pelos 15 minutos do primeiro tempo a questão secundária do placar já estaria decidida. Dois (ou três) a zero. Como o time jogava muitas vezes por ano (até cem partidas), começava a tocar bola no ataque.
Dava até para olhar para os outros (na época de meu primeiro jogo: Gilmar, Dalmo, Mauro, Calvet e Geraldino; Zito, Mengálvio, Coutinho e Pepe). O adversário tomava baile contrito, humilde. Um ou dois gols a mais aconteciam quase sempre. Mais raro era o chamado “gol de honra” do adversário. E fim.
Vez ou outra, Pelé não engrenava. Alguém costumava resolver o caso (geralmente Coutinho ou Pepe). Mas, muito raramente – muito mesmo –, o time perdia em casa. A torcida não reclamava muito.
Demorei pouco tempo para perceber que um jogo com Pelé era uma coisa, e um jogo de futebol, outra – bem menos atraente. Como eram tempos mais tranquilos, desde oito anos mais ou menos, comecei a receber autorização de meus pais para pegar bonde em Santos. Mais jogos na Vila e outros tantos no Ulrico Mursa, estádio da Portuguesa Santista.
Este era ainda menor que a Vila Belmiro. O alambrado na linha de fundo corria junto à linha – e havia um “U” atrás do gol. A torcida ficava a coisa de um ou 2 metros do goleiro. Torcedores jogavam moedas no goleiro adversário enquanto o xingavam.
As diferenças eram poucas. Havia quem vaiasse Pelé quando ele entrava em campo. Um ou outro adversário ganhava confiança para um olhar menos humilde, raramente desafiador. A torcida pedia garra.
Os resultados eram iguais. Antes da metade do primeiro tempo, a fatura costumava estar liquidada. Havia apenas um pouco mais de cuidado na troca de bola, para não dar a impressão de que o humilhado adversário estava, de fato, sendo escrachado.
Um pouco maior, talvez aos 12 anos, recebi minhas primeiras autorizações para ver Pelé nos estádios dos times grandes de São Paulo. Aí a torcida do adversário era sempre maior, com pequenas variações de comportamento. No Parque Antártica, os palmeirenses exibiam confiança: o time de Dudu e Ademir da Guia era o único a obter a façanha de ganhar o Campeonato Paulista na Era Pelé. Djalma Dias gozava da fama de ser o único zagueiro capaz de parar o craque na bola.
Mas nada disso mudava o essencial: do momento que pisava em campo até o primeiro degrau do vestiário na volta, os olhos de todos se fixavam em Pelé – algumas vezes, depois de derrotas do craque, com aquela impressão de que ele era um simples mortal.
Já no Pacaembu, o negócio era muito diferente. Ali era a casa do Corinthians, que não possuía estádio. Ali, a fiel comparecia em massa. Ali, a torcida do Santos era calada sempre. Ali, todos desafiavam.
Pelé entrava em campo com a mesma singeleza de sempre. Educado, calmo, controlado. O juiz apitava, o destino implacável dominava a mente dos jogadores, dos vendedores de picolé, dos policiais, dos torcedores. Acontecesse o que acontecesse, ele ganhava o jogo. Goleadas humilhantes nos bons dias, viradas espetaculares nos maus.
Era pequeno, mas notei. A força da torcida a seu favor era retribuída com lembranças agradáveis. Mas ele era dono de gana igual para ser lembrado como o grande pesadelo da massa corintiana. E assim fazia história.
Em 1968, o Corinthians montou um grande time, contratou o técnico do Santos. Não vi o jogo do dia 6 de março de 1968, quando finalmente o “Timão” ganhou por dois a zero, e a torcida saiu gritando: “Um, dois, três, o Santos é freguês”, depois de 11 anos de derrotas. Mas Pelé acabou campeão paulista.
No ano seguinte, o Corinthians, em desespero, conseguiu uma mudança de regras: um playoff no lugar de pontos corridos. Por ironia do destino, o time teve um primeiro turno espetacular, que terminou com outra vitória sobre Pelé. Mas dois jogadores morreram num acidente de automóvel, quebrando o embalo do time. Ainda assim, acabou com mais pontos do que todos. Seria o campeão pela regra antiga.
Do alto dos meus 13 anos, contava com autorização de meus pais para entrar no estádio do Morumbi (ainda em obras) lotado, com duas torcidas urrando. Acreditem, naquele tempo, uma criança como eu não achava o menor motivo para sentir medo. Era tudo festa. Nem havia separação de torcidas.
O time do Santos mudara quase todo: Claudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Djalma Dias e Rildo; Clodoaldo e Lima; Toninho, Pelé, Edu e Abel. Dez jogadores de seleção nacional (nove da brasileira, mais Ramos Delgado da seleção argentina).
Mas tudo foi como sempre. Olhos postos em Pelé. Um gol que incluiu um chapéu em dois corintianos num único toque. Porta aberta para mais um campeonato.
A essa altura, existia transmissão regular pela televisão. O time do Santos jogava em casa em qualquer estádio do mundo. Pelé era o centro dos olhares nos grandes estádios e nas espeluncas das excursões caça-níqueis. O tempo dos limites havia passado: eu não era mais um privilegiado pela presença em Santos. Agora todos sabiam o que era um rei.
A magia da presença pessoal era menos intensa na televisão. Mas fez memórias que se transformavam em números capazes de dar uma dimensão da obra futebolística de Pelé.
Entre 1958 e 1969, o Santos ganharia oito títulos paulistas (em 1958, Pelé marcou 58 gols em 38 jogos, recorde até hoje não superado) – até o fim da carreira no time, em 1974, seriam dez títulos. Venceu quatro torneios Rio-São Paulo. Foram: 6 Taças do Brasil (o campeonato brasileiro da época), 5 em seguida; 2 Libertadores da América e 2 Mundiais de Clubes.
O time do estádio modesto de minha infância era o padrão mundial. Tudo girando em torno de olhar Pelé.
O documentário “Pelé”, dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, estreia dia 23 de fevereiro no serviço de streaming Netflix
Na seleção brasileira, ocorria o mesmo. Em seu jogo de estreia em campeonatos mundiais, fez seu primeiro – e antológico – gol na competição dando um chapéu no adversário. No quarto, ainda com 17 anos, ganha o primeiro campeonato mundial para o Brasil. Disputou quatro Copas do Mundo, ganhou três. Ao todo, foram 92 jogos na seleção, com 77 gols. Em termos estatísticos, nada se compara até hoje com o desempenho nas 40 partidas em que jogou junto com Garrincha: 36 vitórias, 4 empates, nenhuma derrota.
Somando tudo, na carreira que terminou em 1977; foram 1.367 partidas e nada menos que 1.282 gols, o que dá uma média de 0,94 por partida. Ao longo de 20 anos.
O conjunto da obra permanece até hoje inalcançável por qualquer outro jogador. E isso no esporte mais popular do mundo, o praticado por mais gente.
Isso é Pelé, criador de seus próprios limites.
*O documentário “Pelé”, dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, estreia dia 23 de fevereiro no serviço de streaming Netflix. A narrativa aborda o período em que Pelé passou de um promissor talento de 17 anos na Copa do Mundo de 1958 até se consolidar como herói nacional durante uma era radical e turbulenta da história brasileira, culminando em sua consagração na Copa de 1970, no México, onde levantou o seu terceiro troféu da competição.
Tryhorn e Nicholas, trata-se da mesma dupla responsável pela produção de Tudo ou Nada: Seleção Brasileira, série da Amazon sobre a conquista da Copa América de 2019, e outras obras igualmente dedicadas ao universo dos esportes, como Kenny, a respeito do ex-jogador Kenny Dalglish, ídolo do Liverpool, e Crossing the Line, acerca do ex-atleta olímpico Danny Harris. A produção executiva de Pelé ficou a cargo do cineasta Kevin Macdonald, vencedor do Oscar de melhor documentário de 1999 com Munique, 1972: Um Dia em Setembro.
O filme traz cenas raras de arquivo e declarações de ex-companheiros do Santos e da seleção brasileira, como Zagallo, Amarildo e Jairzinho.