Entre os anos 1950 e 1960, sambas espirituosos, que traduziam a alma do povo mais simples — como Camelô, A banca do distinto, Mocinho bonito, Estatutos da gafieira e Pistom de gafieira — se tornaram imortais. Essas canções saíram da mente de William Blanco Abrunhosa Trindade, mais conhecido como Billy Blanco, arquiteto, músico e compositor que nos legou algumas das pérolas da música popular brasileira compostas naquelas décadas.
Nascido em Belém, no Pará, em 8 de maio de 1924, o oitavo filho do professor Almerindo Cipriano Trindade manifesta, logo cedo, a aptidão musical ao aprender a tocar violão. Antes mesmo de concluir o antigo ginásio, estreia como violonista no conjunto Os Gaviões do Samba. Apresenta-se, também, na Hora Juvenil, programa da Rádio Clube de Belém.
Aos 21, é mandado pelo pai a São Paulo para estudar Engenharia na Universidade Mackenzie, onde é convidado a fazer a direção musical do show de abertura da Mac-Med, tradicional torneio esportivo no qual seus colegas competiam com alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). A partir daí, passa a tocar, cantar e compor músicas que o credenciavam a ingressar no mundo artístico, desde que achasse um nome mais curto para fixar na memória do público. “Por que você não usa ‘Billy’, o apelido de William? Isso! Billy Blanco! Joga o resto fora e fica só com esses dois”, foi a sugestão de um amigo, que não demorou muito para pegar entre os alunos da faculdade.
Devidamente rebatizado, Billy promove uma mudança fundamental na vida: abandona São Paulo e os dois anos já cursados de Engenharia para recomeçar do zero na Faculdade de Arquitetura e Belas Artes, posteriormente incorporada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Graduado em 1950, mantém as duas carreiras em paralelo, com a prancheta dos projetos arquitetônicos ao lado do papel pautado para escrever música e letra das próprias canções. O seu mais estrondoso sucesso acaba sendo escrito a nanquim na folha de um desenho, como conta no livro Tirando de letra e música (Editora Record, 1996). Frequentador da famosa gafieira carioca Estudantina, ruminava sobre o comportamento dos frequentadores assíduos quando teve um estalo durante o trabalho. “A ideia se concretizou quando desenhava uma agência postal para o Departamento de Correios e Telégrafos. Para não esquecer letra e melodia, escrevi na folha do desenho, com nanquim e tudo. Essa agência foi demolida, mas o projeto musical vigora até hoje na alegria do povo”, afirma Billy, no livro.
Na então capital e principal centro cultural do País, a sua música se desloca de uma certa nostalgia para se “cariocar” plenamente na alegria e na irreverência. A paixão imediata pela cidade e por seu povo está expressa nas faixas do disco Rio de Janeiro — a montanha, o sol e o mar, compostas em parceria com um Tom Jobim pré-bossa nova, gravado em 1955. Rebatizadas pela imprensa e pelo público como Sinfonia do Rio de Janeiro, as músicas ganham as vozes mais famosas da época: Dick Farney, Lúcio Alves, Jamelão, Jorge Goulart, Nora Ney, Elizeth Cardoso, Dóris Monteiro, Emilinha Borba e Os Cariocas, conjunto que cantou embalado pelos sofisticados arranjos de Radamés Gnattali.
As circunstâncias da criação de um dos seus maiores sucessos é emblemática da noite carioca nos Anos Dourados. Conta o próprio Billy que uma ex-namorada e melhor amiga, a cantora Dolores Duran, certa vez, sofreu machismo e racismo de um frequentador assíduo do Little Club, em Copacabana, ao não se dirigir a ela com palavras, mas por meio de recados ditados ao garçom, nos seguintes termos: “Manda a negrinha cantar tal música”. Noites depois, olhando fixamente para o indigitado, Dolores canta A banca do distinto, com estes versos iniciais que hoje soam como um hino do antirracismo: “Não fala com pobre/Não dá mão a preto/Não carrega embrulho/Pra que tanta pose, doutor?/Pra que esse orgulho?”.
A idéia de outra obra-prima do cronista musical urbano surge quando, ainda estudante de Arquitetura, ao percorrer as calçadas do centro do Rio, observa as pessoas que as tornavam local de trabalho. “Era prestidigitador, músico, acrobata e mágico que, com esses recursos de talento incrível, vendiam até geladeira para esquimó”, relembra. Assim nasce Camelô. “Esse dono da calçada/Na conversa bem jogada/Vende a quem não quer comprar”, que, enfim, “… Escapa/Gozando a cara do ‘rapa’/Que bobeou outra vez”.
Na vertente do primeiro grande sucesso, Estatutos da gafieira, gravado em 1954 por Inezita Barroso — que traz a frase “O ambiente exige respeito”, transformada, depois, em bandeira ecológica —, Billy envereda por Pistom de Gafieira, que narra as desventuras de Doca, “um crioulo comportado” que desencadeia uma briga ao mexer com a namorada de “um cara fraco”, mas que era “faixa-preta simplesmente”. Dessa mesma safra pertence Estatutos de boate, uma visão crítica e irônica do comportamento das pessoas da alta sociedade em um ambiente permissivo: “Gafieira de gente bem/É boate/Onde a noite esconde bobagem que acontece/Onde uísque lava qualquer disparate/Amanhã um sal de frutas e a gente esquece”.
Durante o governo de Juscelino Kubitschek, Billy solta a verve para incentivar os cariocas a boicotar a nova capital recém-construída com Não vou pra Brasília. No entanto, o exercício da crítica bem-humorada — que partilhava com Juca Chaves — logo se interrompe. Após o golpe de 1964, durante os Anos de Chumbo, com amigos (como o cartunista Ziraldo) presos no Forte de Copacabana, nosso cronista compõe Canto livre, música só gravada após o fim da ditadura. Em 1974, conclui Sinfonia paulistana — retrato de uma cidade, após dez anos de trabalho que resulta em 15 músicas, cantadas por Elza Soares e Pery Ribeiro, entre outros, com a participação do coro do Theatro Municipal de São Paulo. Por décadas, faz parte da trilha sonora diária do noticiário matutino de uma emissora local o estridente refrão da canção Amanhecendo: “Vambora, vambora!/Olha a hora, vambora, vambora!”. Vinte anos após a homenagem à cidade onde fora estudante, já distante dos holofotes, Billy lança o álbum Guajará — suíte do arco-íris, um tributo à sua Belém natal.
Billy Blanco morre no Rio de Janeiro, em 2011, aos 87 anos, deixando para trás o tempo em que se podia ser amigo do presidente Jango Goulart e do arquirrival Carlos Lacerda sem sofrer perseguição dos adeptos de um lado ou de outro.