entrevista

Demissão de si mesmo

14 de janeiro de 2025
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O que acontece quando a crise é tamanha, e multifacetada, que o indivíduo, além de se perder de si mesmo, perde no caminho a capacidade de articular conexões que permitam soluções? E qual o reflexo de tempos incertos sobre a saúde mental, especialmente dos mais jovens e das gerações que estão por vir? 

É em busca de respostas a essas perguntas que ouvimos o psicanalista Christian Dunker — uma das vozes mais sóbrias no debate contemporâneo sobre o lugar do sujeito num mundo em transformação. Ao unir psicologia, psicanálise e filosofia, ele se debruça sobre a análise de sujeitos e objetos num mundo que, para muitos, parece estar à beira do colapso, o que gera um cardápio de sintomas de sofrimento com efeitos em cadeia, nós difíceis de desatar.

Sobretudo, gera desesperança e menor fôlego para o sonhar, algo tão intrínseco à experiência de felicidade humana. “Do ponto de vista psicanalítico, me preocupa o crescimento, a capilarização, do que eu chamo de estado demissionário do sujeito: vidas que não se entendem como geridas minimamente pelo próprio sujeito responsável”, resume Dunker.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista:

Vivemos um momento histórico de mudanças, diria até sem precedentes. Como a atual época impacta a nossa vida enquanto indivíduos e a maneira como interagimos com a realidade?

Há quem descreva esse momento como um entroncamento de crises. Contudo, ao contrário de outras crises que ocorrem dentro de um mesmo processo, vemos vários caminhos que produzem crises climática, econômica, política e de saúde mental. Como em todo momento desse tipo, há alta incerteza e reatividade. Um lado aponta para recuo, espera, prudência. O outro produz reações que, muitas vezes, são contraproducentes para, de fato, gerar uma reação de médio e longo prazos que permita não só fazer frente aos problemas, mas aglutinar as pessoas para uma mesma direção, reunindo esforços de pesquisa e capital político para fazer e agrupar indivíduos que tenham capacidade de trabalharem juntos. Isso falta em função da persistência, da novidade, do inusitado. Há uma dimensão nova na economia, que é a linguagem digital, acabando com muitos negócios, construindo e reconstruindo “hidras” que não sabemos quantas cabeças terão. Vemos uma reformulação do lugar do Brasil no mundo e um Brasil que acabou, envolvendo o luto e a reconstrução do que queríamos no passado. Mas a crise é tamanha que temos de seguir em frente, mesmo sem saber para onde ir.

Qual é exatamente o Brasil que acabou e qual está surgindo?

Ainda não dá para saber direito, mas é certamente um Brasil neopentecostal, evangélico, uma mutação nas formas religiosas dominantes. Um Brasil que não sonha mais com a industrialização, mas com o agronegócio. Não se trata apenas de uma nova atividade econômica, mas uma nova mentalidade, uma nova forma musical. É uma outra maneira de olhar, inclusive, para o sistema dos saberes e da cultura nacional. A música popular brasileira, com Chico, Caetano, que moldou projetos de interpretação da nossa história, unindo cultura e política, e delineou nossa capacidade de sonhar, estão se encerrando, literalmente. É também um Brasil que tinha uma política subjetiva para a desigualdade que se esgotou. E aqui penso em quantas gerações viveram e transmitiram o legado do seu sofrimento e do seu sacrifício em nome da educação. “Eu não tive, mas os meus filhos terão.” “Eu me sacrifico, pego um trabalho mal remunerado, mas eles seguirão em frente, vão fazer mais do que eu.” Testemunhamos as primeiras gerações na universidade, a expansão do ensino superior — e, depois, o refluxo disso. A obtenção do título não redundou na ascensão social esperada, o sonho se encurtou e virou outra coisa. Isso vai definindo o Brasil modernista.

O que mais preocupa você nesse novo Brasil dos pontos de vista psicanalítico e filosófico?

Do ponto de vista psicanalítico, me preocupa o crescimento, a capilarização, do que eu chamo de estado demissionário do sujeito — vidas que não se entendem como geridas minimamente pelo próprio sujeito responsável. São estados de errância, de apatia, de reatividade, de inconsequência com o que se diz, com o que se pensa, com o que se sente em relação ao outro. E isso me preocupa porque redunda em solidão, em jogar ao mar recursos naturais de saúde mental. Quais são? Os amigos. Ou aquela tia que talvez não gostasse, mas que vinha com aquela palavra, servia aquele bolinho, e você voltava. Vai-se, no fundo, replicando de diversas maneiras essa atitude de demissão. Ouço isso de muitos jovens e adolescentes: “Para que contribuir para o INSS? O mundo vai acabar antes”. Será mesmo que é assim? “Está tudo tão ruim que nem penso em ter filhos, porque o mundo vai acabar antes. Plano de saúde? Para quê, se a gente vai acabar morrendo envenenado mesmo.” Esse desleixo consigo mesmo é sinal da vida valendo pouco. E vida valendo pouco se junta a outras vidas valendo pouco. Isso resulta sintomas difíceis de tratar depois. Pessoas que mesmo com boas escutas, bom suporte, não reagem bem a medicação, psicanálise, quimbanda, mesa branca etc. Porque esse estado demissionário é complicado. Sob outro ponto de vista, ligado mais à temática de leitura de Brasil, preocupa-me que enfrentemos um período muito longo de desdobramento do fascismo. Não é porque Bolsonaro foi embora que isso desapareceu. Há o fascismo digital, coaches de todo o tipo, figuras perigosas, que vão demorar para sair da nossa cultura, darão trabalho — e pode ser que não sejamos bem-sucedido, que percamos para a miséria. E não só a miséria no sentido econômico, mas no subjetivo, aquela que está envolvida nesse tipo de relação com a vida, relação com o futuro, relação com os sonhos.

Como estamos, enquanto brasileiros, no quesito saúde mental?

Temos pesquisas. Primeiro lugar mundial em ansiedade em grandes metrópoles e segundo em depressão. Abuso de substâncias, 13%. Nossas crianças empacotadas em diagnósticos massivos de autismo e Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). A novidade é que as pessoas estão percebendo e entendendo que esse cenário não tem precedentes. Inclusive, está havendo uma mudança no estatuto do transtorno mental, que era estigmatizado, para uma nova identidade.

E como estamos lidando com essa situação?

Existe um dado muito curioso que fala muito do Brasil nessa nova configuração público-privada. O País tardou em fazer uma reforma psiquiátrica. Em 2001, a Lei Paulo Delgado previu uma série de ações que não foram feitas. A saúde mental é assunto privado, das famílias. No fundo, há o entendimento de que essa é uma crise a ser vivida e gerida em uma plataforma de individualização liberal. É como eu me administro, para o bem e para o mal. Eu me administro como unidade produtiva, eu S.A., eu me administro como uma unidade de risco jurídico. Nossa geração é a última primariamente preocupada com doenças como diabetes e câncer. Do “nós” em diante, a primeira preocupação é saúde mental. 

Você concorda com a afirmação de que a ansiedade é o mal do século?

Concordo, mas também tenho feito trabalhos críticos mostrando que as nossas formas de nomeação de sintomas são muito genéricas. Há 20 anos, falava-se de estresse: estresse bom, estresse mau, aumento do estresse, estresse pós-traumático. O estresse ainda existe como categoria, mas não está mais na boca do povo, porque, de certa forma, foi substituído pela ansiedade, pelo pânico e pelas diferentes modalidades ansiógenas. Trata-se de uma composição meio arbitrária de sintomas diferentes que são unificados e chamados de ansiedade. É o mesmo que dizer “tenho febre” — isso pode ser tuberculose, sífilis etc., mas já serve para dizer que tem algo errado. No fundo, a depressão e a ansiedade parecem fazer parte da mesma síndrome de mal reconhecimento do sofrimento. E o cardápio atual é mais vasto: uma sociedade também autista e com problemas de atenção. 

Você vê esse recorte das diferenças geracionais no consultório?

É muito claro. Não só pela vertente diagnóstica, mas pelos tipos de preocupação e tratamento. Antigamente, a medicina em geral (e a saúde mental em particular) trabalhava com o modelo da reparação. Há um abalo, uma perda de função, e a medicação repara essa situação. Popularizou-se essa narrativa de que a depressão é um déficit de serotonina. Então, como se fosse uma diabetes mental, você “toma” serotonina, recompõe-se e volta ao parâmetro. Essa hipótese se mostrou falsa, e, hoje, esses mesmos remédios têm menos eficácia, além do acúmulo da medicação cruzada. Mas as pessoas estão exauridas do modelo baseado em tomar uma substância que não vai compensá-la, no duplo sentido. Surge, então, uma nova abordagem médica: em vez de levar de volta ao seu estado anterior, você toma ritalina e, em vez de tirar nota seis, tira oito na prova. Em vez de cinco, tira sete. Estamos criando artificialmente novos estados, o que afeta a competição e a meritocracia.

Nesse aspecto, quais são os papéis das redes sociais e da hiperconectividade?

Bom, precisamos olhar para isso com uma certa humildade, no sentido de que grandes tecnologias de impacto sempre causarão efeitos danosos que, daqui a 50 anos, todo mundo vai saber quais são. Quanto tempo demoramos para atestar que o tabaco faz mal? Estamos numa situação um tanto parecida. Telas para crianças muito pequenas não são permitidas, e só agora estamos debatendo o que fazer com esses dispositivos digitais nas escolas. É importante não excluir o aluno desse universo, mas como controlar o uso? Não sabemos. Como controlar o discurso de ódio? Como controlar acesso a sites pornográficos ou contraindicados para menores? Não é possível. E isso tudo é tão envolvente que nem percebemos que a ausência do debate faz parte do problema. Por exemplo, as apostas. Vivemos em um país com uma cultura de endividamento como forma de vida. O Brasil está reendividado graças aos sites de apostas, que poderiam ter sido legislados. Essa lentidão de resposta impõe cada vez mais um atraso, não no sentido do subdesenvolvimento, mas uma lentificação apática das instituições, as quais começam a ser atacadas porque não estão respondendo à altura no tempo correto.

Nesse contexto em que vivemos hoje, também se fala com muito em epidemia da solidão. Como ela se dá?

Em primeiro lugar, ela é efetiva. Há uma pesquisa norte-americana que mostra que, nos 52 Estados do país, há 1,5 ponto a mais de solidão a cada geração, menos na Flórida. Haitianos, cubanos e brasileiros parecem estar fazendo frente a um processo gravíssimo que envolve depoimentos do tipo “Faz três meses que ninguém encosta em mim”, “Ninguém dá a mão” ou “Eu não abraço mais ninguém”. A solidão é um problema gravíssimo porque acelera, vulnerabiliza, dificulta o acesso, corrompe o cuidado consigo mesmo e deixa o indivíduo muito indefeso para as próprias loucuras. Aqui, gosto de usar a antiga expressão “O louco perigoso é o louco solitário”. Existem aqueles que estão contidos à força pelo sistema, enjaulados em uma prisão disfarçada de hospital, e há muitos que criam as próprias redomas — ou solidões que não evoluem para a solitude —, o que é muito nocivo para a temática da saúde mental. Os quatro fatores transversais mais crônicos para a agudização de sintomas: bullying, assédio moral, assédio sexual e racismo. Qual é a reação básica em uma situação de maltrato? Isolamento do sujeito. Na escola, em casa e na internet. É o efeito de culpa e da vergonha. “Isso que está acontecendo comigo é causado por quem? Por mim mesmo. E eu não conto isso para ninguém. Faço com o meu sofrimento o que a cultura diz: resolva-se sozinho. O problema é que quando o assunto é loucura, esse não é um bom caminho. A resposta é sempre a palavra com o outro.

E como enfrentar o problema?

Por meio do incremento das práticas de escuta na cultura, que é uma espécie de habilidade-mãe para as capacidades socioemocionais. Mas, para se escutar, é preciso presença, tempo, sair de si, repertório e inteligência para boas perguntas. O que nos une precisa ser mais interessante pelo futuro que buscamos do que por quem somos agora. Mas, de repente, estamos viciados em escrever no WhatsApp.

O que a sociedade brasileira pode (e deve) fazer para recuperar e desenvolver a capacidade de escuta?

Precisamos ter a consciência de que o nível de sofrimento passou do intolerável e retomar processos de gente e de instituições ligadas a direitos humanos. Desmontamos tudo isso, e vieram os discursos das armas e de se resolver a violência pela violência. Isso vai dar em feminicídio, em suicídio, em violência doméstica, não vai dar certo. Além disso, agora, estamos inseridos em uma cultura da bala, da bíblia e do boi, que são de baixos teores para a escuta.

ESTA ENTREVISTA FAZ PARTE DA EDIÇÃO #484 IMPRESSA DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA DA PUBLICAÇÃO NA PLATAFORMA BANCAH.

Você também pode assistir a entrevista em vídeo,  disponível no Canal UM BRASIL.

Entrevista a Jaime Spitzcovsky | Edição de texto de Dimalice Nunes Canal Um Brasil
Entrevista a Jaime Spitzcovsky | Edição de texto de Dimalice Nunes Canal Um Brasil
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