Enxergar o País sob a ótica do copo meio cheio ou meio vazio? Essa é a reflexão de Pedro Nery, economista e autor do livro Extremos: um mapa para entender as desigualdades no Brasil (Editora Zahar), lançado neste ano. Nele, Nery analisa topos e bases da nossa estrutura social e traça um panorama para entender a questão da desigualdade e seu reflexo no crescimento do País.
Na sua avaliação, a Constituição de 1988 deu condições para que vivêssemos um período de avanços relevantes, principalmente na Saúde e na Educação. “Até a pandemia, tínhamos reduzido a pobreza pela metade e a extrema pobreza a um terço”, exemplifica. Aí está o “copo meio cheio”. Por outro lado, ainda não conseguimos superar as profundas disparidades entre as classes sociais. “O ‘copo meio vazio’ é este: uma desigualdade que persiste”.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Para o livro Extremos você partiu da premissa de que era preciso conhecer os lugares retratados. Que Brasil é esse que você conheceu?
É um livro sobre desigualdade, mas também um livro de viagens, um livro de turismo de estatísticas. Selecionei um determinado indicador, uma planilha, um ranking e fui à cidade que apresentava o menor índice de desenvolvimento ou o maior porcentual de aposentados. Os roteiros saíram, de fato, de extremos da planilha, que são os limites da desigualdade nacional. Alimentava um desejo pessoal — creio eu, foi exacerbado pela pandemia e pelo isolamento — de conhecer esse lugares e tive essa oportunidade, que, de outra forma, não teria conseguido. Também tive a oportunidade de acessar personagens ou realidades que pudessem ser descritas e conversassem melhor com os leitores, porque são temas muito importantes, mas, muitas vezes, bem áridos. Cada capítulo é um extremo de alguma realidade nacional (são oito). Extremos que cobrem as cinco regiões com pessoas de verdade, de carne e osso, que ajudam a entender determinado problema.
Olhando para a trajetória de combate às desigualdades, o que deu certo e o que ainda falta fazer?
Precisamos ter otimismo para olhar adiante, mas também a indignação com a realidade. Saber celebrar os avanços e reconhecer o que precisa ser feito é fundamental. A partir da Constituição de 1988, melhoramos muito em Saúde e Educação, que foram universalizadas. Houve uma queda expressiva na mortalidade infantil. Ganhamos, no conjunto da população, dez anos em expectativa de vida, o que é muito. Reduzimos o analfabetismo em 80% e dobramos os anos de estudo. Até a pandemia, a pobreza tinha caído pela metade, e a extrema pobreza a um terço do que era. É possível julgarmos esse “copo meio cheio”, então, o Brasil está muito melhor do que era. O País avançou, se não mais rápido do que outros países em desenvolvimento, muito entre os emergentes democráticos, porque esta é outra questão interessante: talvez seja mais complexo combater a desigualdade em uma democracia vibrante como a nossa. Agora, no “copo meio vazio”, há muita coisa a ser feita. Se, por um lado, caiu a desigualdade de consumo entre famílias pobres e ricas — apontando uma convergência no padrão de consumo de eletrodoméstico, geladeira, televisão, máquina de lavar, celular e computador, — ainda existe uma disparidade de renda muito grande. As 2 milhões de pessoas mais ricas, entre 1% e 2% da população, concentram uma proporção de rendimento praticamente sem igual no mundo. No Brasil moram algumas das pessoas mais ricas e mais pobres do mundo; o País é uma síntese nesse sentido. Então, sim, muito pode ser feito. A própria Reforma Tributária, promulgada recentemente, prevê que o governo envie uma proposta de tributação da renda. Idealmente, isso precisa estar incluído na agenda de redução da tributação trabalhista. Ainda que grande parte dos países tribute salários antes de serem pagos, o Brasil faz isso demais, e, muitas vezes, o trabalhador não tem consciência do grande desconto sobre o que produz antes de receber a sua parcela. E também há muito a ser feito na proteção à infância. Recentemente, o governo assinou um decreto prevendo a criação da política nacional para a primeira infância. Vamos torcer para que tudo saia da melhor forma possível, porque, de fato, ainda não contamos com uma política nacional que integre educação, saúde e assistência para famílias na primeira infância, que é onde a pobreza está muito concentrada e impacta de forma duradoura. Eis o “copo meio vazio”, a desigualdade que persiste. Mas precisamos manter um otimismo realista.
Qual é a importância da Reforma Administrativa no contexto da redução da desigualdade?
A Reforma Administrativa foi constantemente discutida como uma medida fiscal, mas precisa ser entendida também como uma medida para a eficiência da economia ou a redução das desigualdades. É interessante que Estado redirecione mais os recursos para os mais pobres, bem como que não haja grande apropriação por parte das elites. Se o Estado que não está entregando educação de qualidade, estamos deixando o mais pobre para trás na corrida do mercado de trabalho, porque as famílias mais ricas investem melhor no ensino dos filhos. Existe certa convergência quanto a algumas necessidades para essa reforma, como limitar os salários acima do teto, um debate no qual estamos atrasados, porque a Constituição já prevê que esses supersalários não existam. É preciso segurar a parcela dos recursos direcionados ao 1% mais rico da população a fim de liberar espaço para gastar mais com os menos abastados.
Você diz que não estamos condenados a concentrar renda no topo, que essa é uma escolha da sociedade ao, por exemplo, tributar pouco o capital. Como olhamos para isso comparado a outros países que conseguiram corrigir melhor as desigualdades, sobretudo em relação à renda?
Os países que instituíram sistemas tributários progressivos e redes de proteção social, também progressivas e voltadas aos mais pobres, foram os anglo-saxões (menos os Estados Unidos) e outros países europeus. É claro que muitas nações asiáticas reduziram bastante a desigualdade, mas não com as estruturas democráticas que existem no Brasil. Dinamarca e Nova Zelândia são dois exemplos muito interessantes que nos fornecem uma luz. Nessas duas nações, não há tributação sobre a folha de salários. Para compensar, tributam a renda. Ainda que eu não ache realista chegarmos a uma tributação zero sobre a folha, é possível imaginar um modelo semelhante ao que existe nesses países.
Por que combater a desigualdade importa, especialmente num país democrático como o Brasil?
Combater a desigualdade importa, não só pela questão ética e moral, mas também pelo crescimento da economia. Se não há investimento, por exemplo, em capital humano, a economia não cresce como deveria. É interessante observar que parte dos medalhistas olímpicos mais destacados vêm de lares que recebiam programas sociais. E não só atletas olímpicos. Veja quantos engenheiros, inventores, cientistas, médicos, advogados, poetas, escritores, artistas deixamos de formar por falta de acesso a creche ou educação — ou pela fome. Ainda sofremos com a fome no Brasil. O cérebro não cresce como deveria, não se formam as habilidades cognitivas e socioemocionais importantes para o mercado de trabalho. Essa é uma questão de justiça social e de crescimento econômico. Imagine quantos talentos desperdiçamos? Além disso, num país muito desigual como o nosso, há mais frustração e muita rejeição, que podem contaminar a própria percepção de democracia. Junto com a concentração de poder econômico, vem o acúmulo de poder político, o que é muito ruim. Estou me referindo às pessoas extremamente ricas que, por meio de seu poder, obtêm privilégios no setor público e capturam as instituições democráticas. Por isso que reduzir a desigualdade é fundamental para o crescimento econômico e a preservação da democracia.
ESTA ENTREVISTA FAZ PARTE DA EDIÇÃO #483 IMPRESSA DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA NA VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.
E aqui você confere em vídeo a entrevista de Pedro Nery, no canal UM BRASIL.