O escritor Gabriel García Márquez dizia que o realismo de sua obra não tinha nada de mágico ou fantástico. O estilo que consagrou o autor colombiano era inspirado, segundo ele, no cotidiano da América Latina, onde fatos esdrúxulos fazem parte do dia a dia. Isso inclui os políticos, cujas atitudes, muitas vezes, ultrapassam a linha do realismo mágico e adentram o campo do absurdo. “Aquilo que lemos como absurdo na obra de García Márquez seria superado pelas ações dos políticos latino-americanos, tanto de direita como de centro ou de esquerda”, explica o jornalista Ariel Palacios, que acaba de lançar o livro América Latina, lado B (Globo Livros, 448 páginas, R$ 64,90).
A obra reúne casos bizarros de presidentes, ditadores e monarcas de países próximos ao Brasil, como El Salvador, Peru, México, Venezuela e Argentina. Para isso, Palacios contou com a experiência de quase três décadas como correspondente para assuntos latino-americanos de diversos veículos de imprensa, como O Estado de S. Paulo, Rádio CBN e GloboNews. São histórias saborosas ou, como classifica o próprio autor, bizarras. Os protagonistas são mandatários da América Latina ou pessoas do seu entorno, sejam parentes, sejam funcionários de alto escalão. É o caso do ditador de El Salvador, que encontrou uma maneira pouco convencional para curar epidemias que assolavam a população: embrulhar os postes de iluminação pública com papel vermelho.
Na mesma linha, o presidente do Equador, Abdalá Bucaram, nos anos 1990, promoveu um leilão dos seus bigodes em um programa da televisão equatoriana apresentado pelo próprio presidente. No México, López Obrador não fez leilão algum: preferiu rifar o avião presidencial vendendo bilhetes para a população. Na Argentina, base de trabalho e residência de Palacios, as histórias são fartas. Uma delas se refere a López Rega, assessor de Juan Domingo Perón, que tentou ressuscitar o chefe sacudindo as canelas do fundador do movimento peronista na ocasião da morte do presidente, em 1974. Ao sacolejar o cadáver, “El Brujo”, como Rega era conhecido entre os argentinos, gritava a plenos pulmões: “Meu faraó, não vá embora!”. “O realismo mágico da literatura teria muitas dificuldades para concorrer em conteúdo com pessoas como Nicolás Maduro [presidente da Venezuela], que diz falar com Hugo Chávez [antecessor de Maduro, morto em 2013] por intermédio de um passarinho, ou Javier Milei [presidente da Argentina] pedindo conselhos políticos ao cachorro morto”, afirma o jornalista.
Apesar da farta coleção daquilo que no Brasil seria chamado de “causos políticos”, o livro não se resume às excentricidades. De forma perspicaz e envolvente, Palacios traça robustos panoramas histórico e político da América Latina, apontando como os países da região têm trajetórias marcadas por instabilidades políticas, crises econômicas, golpes de Estado e corrupção praticadas por líderes populistas que, muitas vezes, nem sequer completaram os mandatos. Basta lembrar que, em 2001, a Argentina teve cinco presidentes em apenas 13 dias, imersa em crise político-econômica. O Brasil, considera Palacios, é um caso à parte que deve ser tratado em futuras obras. “O País deve ser escrito por alguém que cubra Brasília diariamente, e temos colegas muito bons nisso”, ressalta.
A seguir, confira a entrevista concedida pelo jornalista e escritor à Problemas Brasileiros.
Ao longo desses 29 anos como correspondente internacional em Buenos Aires, cobrindo América Latina, havia uma overdose dessas histórias. Acho que estas explicam muito a personalidade desses políticos e o que há por trás disso tudo. O impressionante é que, mesmo com as bizarrices públicas, alguns setores da sociedade os respaldam cegamente, querendo acreditar que são salvadores da pátria.
A América Latina tem uma série de características que também existem na Europa e nos Estados Unidos. Basta ver o surgimento de Donald Trump e a invasão do Capitólio. A diferença é que, nesses países, as instituições são mais fortes, consolidadas. Isso serve de freio para lideranças messiânicas que acham que podem fazer o que querem. Tal como Luís XIV na França, que dizia “L’État c’est moi” [“O Estado sou eu”, em francês], como se eles, pelo fato de chegarem ao comando — por formas democráticas ou não —, pudessem fazer o que lhes desse na telha. A região, talvez, tenha características locais, a herança cultural espanhola, na qual a figura do caudilho e as bizarrices já ocorriam e continuaram ocorrendo após a independência das colônias. Existe uma marca, a do salvador da pátria, dos líderes que se acham ungidos por Deus. E, principalmente, o descaramento em protagonizar casos de corrupção e falar absurdos sem se importar com o impacto das palavras. Aquilo que vimos como absurdo ou mágico na obra do García Márquez seria superado pelas ações dos políticos atuais de direita, centro e esquerda.
“O que vimos como absurdo ou mágico na obra de García Márquez seria superado pelas ações dos políticos atuais.”
Sim, esse caso do general Maximiliano Martínez, que foi ditador da República de El Salvador entre 1931 e 1944, está no livro. Ele considerou que algumas doenças poderiam ser resolvidas embrulhando folhas de cor vermelha ao redor das luminárias públicas ou adicionando água em garrafas azuis para distribuir à população, como uma espécie de cura. O próprio filho de Martínez teve uma apendicite, e quando os médicos disseram que o menino teria de ser operado urgentemente, o ditador disse que resolveria com as tais águas azuis. O menino morreu, e o pai disse que era preciso se resignar porque, segundo ele, “os médicos invisíveis” não quiseram salvar o seu filho.
Acredito que existam todos os tipos de casos, como o presidente ditador ou líder que fala coisas absurdas como se fossem verdadeiras para, de fato, desviar a atenção da população. Mas a maior parte, pelo que tenho constatado, acredita piamente nos delírios que pronunciam. Eles pensam exatamente naquelas loucuras. Acho isso ainda mais perigoso do que o político maquiavélico que inventa algo simplesmente para desviar a atenção.
Sim, [risos] sem dúvida. A diferença é que Bonaparte disse isso como uma ironia, um sarcasmo sobre os absurdos que ele enxergava na política. Muitos políticos, infelizmente, acham que pronunciar e agir de forma absurda conquista votos, ainda mais em tempos de redes sociais. Até porque as pessoas costumam expressar frases como: “Ah, pode ser que ele seja louco, mas, levando em conta todos os corruptos que tivemos no passado, talvez um louco possa resolver a situação do país”. O desespero leva as pessoas a acreditar em qualquer tipo de maluco.
O Brasil merece um livro à parte. E acho que um livro sobre o País merece ser escrito por pessoas que cubram Brasília diariamente, incluindo governadores e prefeitos de algumas cidades. É preciso salientar que o Brasil não é mais bizarro do que o resto da região. O País está no mesmo patamar, só que precisa de um livro diferenciado. Nós temos a tendência de achar que os políticos brasileiros são os mais absurdos, mas não são.