entrevista

O Brasil possível

20 de agosto de 2024
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Sentados lado a lado, o economista, ex-presidente do Banco Central (BC) e sócio-fundador da Gávea Investimentos, Armínio Fraga, e o também economista e ex-governador do Espírito Santo (ES), Paulo Hartung, dedicaram mais de uma hora das próprias agendas para discutir dois aspectos fundamentais da vida brasileira: economia e política.

Dentre os temas debatidos, questões que vão ditar os rumos do País nos próximos anos e inquietam quem já esteve no centro do poder. Indivíduos esses que, agora, observam de certa distância e podem refletir sobre erros, acertos e possibilidades de correções de rota para o País. Da autonomia do BC ao Sistema Único de Saúde (SUS); do populismo das atuais lideranças políticas à Reforma Tributária; do potencial de protagonismo nacional na transição energética ao equilíbrio das contas públicas. O debate foi promovido pelo Canal UM BRASIL, uma realização da FecomercioSP em parceria com o Renova Brasil e com a Organização dos Estados Americanos (OEA)

Humberto Dantas — Qual é a importância de se discutir o equilíbrio fiscal e quanto estamos mais próximos ou distantes de algo minimamente sustentável?

Armínio Fraga — Orçamento é um espaço no qual se definem prioridades. É também um espaço em que as finanças públicas, do ponto de vista mais macro, são definidas, e isso significa, em última instância, a vida financeira do Estado brasileiro — de longe, o maior devedor na economia. Essa discussão é muito árida, mas tem a realidade das pessoas na veia. E são coisas muito básicas. Por exemplo, em um mundo onde o orçamento é bagunçado e as coisas não se mostram transparentes, as prioridades não são adequadamente definidas, e sabemos quem perde: o pobre, sempre. É muito curioso quando vemos um governo de esquerda reagindo mal ao orçamento. Nós sabemos que, no Brasil, a bagunça orçamentária tem um impacto tremendo e é uma fonte de incerteza para todo mundo. Pessoas têm medo de perder o emprego, porque a economia não está funcionando direito. Na minha opinião, poderia crescer 4% ao ano, mas luta por 2%. A ideia da disciplina fiscal conversa com alguns aspectos muito claros. Um exemplo: enquanto vigorou no Brasil, em maior ou menor grau, a dupla responsabilidade fiscal, o que aconteceu com os juros após a Lei de Responsabilidade Fiscal, promulgada em 2000, e o teto de gastos? Foram lá para baixo. Hoje, para pegar dinheiro emprestado por dez anos, o governo paga mais 6,3% de inflação. Naquele momento, caiu abaixo de 4%, chegando a 3%. Assim, é uma ideia maravilhosa. É benesse para todo mundo, não só para os favoritos do rei.

Dantas — Vivemos, por vezes, conflitos internos em governos, uma espécie de sinais trocados. Quão desafiador é esse cenário?

Paulo Hartung — Acho que, primeiro, precisamos resgatar a função da política com “P” maiúsculo, como uma atividade civilizatória. Essa é a primeira questão. Quando uma pessoa diz: “Eu não gosto da política”, na verdade, está criando uma avenida para ser ocupada, muitas vezes, pelo pior que existe na atividade política. Por isso é importante uma escola de formação de líderes. Precisamos de gente qualificada que rompa com o populismo, convença e motive a população e siga uma caminhada certa, no rumo certo. Nosso grande problema, inclusive da América Latina, é que, entre a certa e a fácil, estamos tomando a última direção. E está dando errado. Nós precisamos ousar e de líderes bem preparados. Não importa se é de esquerda, direita ou centro.

Dantas — Quanto da independência do BC, do jeito que está, é um avanço e quanto o conflito entre governo e o banco tem nos prejudicado no que diz respeito ao debate econômico?

Fraga — Primeiro, que independência é essa? O BC tem a independência para, por meio das suas ferramentas, principalmente a taxa de juros, procurar atingir uma meta de inflação que não é o próprio que escolhe. A meta é escolhida pelos nossos representantes eleitos — no caso, o Executivo. E essa combinação faz muito sentido, porque, em tese, deveria gerar cooperação entre as políticas monetária e fiscal. Hoje, nós temos no Brasil um caso complicado, também presente em países vítimas do populismo: cada um cobra do outro algo que o próprio deveria fazer. Se o BC precisa, para atingir a meta de inflação, ter uma taxa de juros extraordinariamente alta, é sinal de que precisa de ajuda. Quem é que pode ajudar? A política fiscal. O desenho tem essa lógica na raiz, mas não é o que está acontecendo. É um país, hoje, que poupa e investe pouco, com horizontes curtos, enquanto o Executivo ataca o banco por uma situação que vai além da decisão do Copom [Comitê de Política Monetária]. Falta, hoje, portanto, pôr em prática esse espírito cooperativo entre as políticas fiscal e monetária.

Hartung — Acredito que toda vez que nós, brasileiros, damos um passo à frente na modernização das instituições, temos que criar um muro de contenção para não haver retrocesso. Se combinarmos boas instituições com bons líderes, faremos o que precisa ser feito, transformando esse enorme potencial do País, principalmente agora, no processo de descarbonização da economia mundial, em oportunidade para o nosso povo, em especial para a juventude. Temo tanto o rumo da política monetária após a mudança da presidência do BC como a regulamentação da Reforma Tributária. Concordo que foi um grande avanço, mas repudio as exceções, porque significam alíquota maior para o conjunto da sociedade. A reforma é um avanço em relação ao que temos, mas me preocupa que a regulamentação agrave ainda mais as distorções. Por isso, precisamos de política.

Dantas — O quanto avançamos na agenda ambiental, olhando para catástrofes, por exemplo, como a das cheias no Rio Grande do Sul, e a seca no Centro-Oeste? E o quanto isso nos ameaça?

Hartung — Esse é um dos maiores desafios da caminhada humana na atualidade. E eu me baseio na ciência, que estudou o efeito dos Gases de Efeito Estufa (GEEs) nas mudanças climáticas. É um baita desafio, porque o planeta precisa mudar a matriz energética, essencialmente suportada com combustíveis fósseis. As soluções unilaterais — como a política de incentivo norte-americana, o “Green Deal” europeu, ou os pesados investimentos chineses em energia solar e em carro elétrico — têm importância, mas não dão conta do problema, pois este não é unilateral, e, por isso a sua solução também é multilateral. O Brasil precisa fazer a sua parte. E qual o maior desafio do País? Debelar a criminalidade exposta no desmatamento, na grilagem. Um conjunto de questões, principalmente no bioma amazônico. Temos um dever de casa e estamos evoluindo nos últimos tempos, além das muitas oportunidades oferecidas. Podemos ser provedores de energia limpa e de produtos fabricados a partir dela, o que acho melhor ainda. Agora, para isso, precisamos cuidar das nossas obrigações, combater as ilegalidades, além de contar com boa regulamentação, bom ambiente de negócios e segurança jurídica nessas diversas regulamentações. Por exemplo: estamos discutindo a regulamentação do mercado de carbono, que dialoga com o mercado voluntário de carbono. Nós precisamos atuar como craques na elaboração dessa lei e parar de inserir “jabutis”, de cada um colocar o próprio interesse à frente, como o que foi feito na Reforma Tributária

Dantas —  Armínio, estamos testemunhando um protagonismo muito importante das suas reflexões acerca de questões de natureza social. O que é possível perceber como desafiador e como avanço no que diz respeito ao Sistema Único de Saúde (SUS)?

Fraga — O espaço orçamentário da Saúde no Brasil é muito pequeno para a tarefa que a Constituição — portanto, nós mesmos — nos delegamos. É claro que existe também um espaço muito grande no uso de tecnologia, na gestão. Mas é preciso  elevar a Saúde ao hall de prioridades do Estado brasileiro. Em primeiro lugar, é necessário tratar do orçamento. Para quê? Para poder ter dinheiro, para uma vida macroeconômica mais tranquila, com juros mais baixos e sem crises recorrentes, e também para complementar um orçamento na área da Saúde, que é muito pequeno. Somos um país que tem 80% do seu gasto concentrados nas contas da Previdência e na folha de pagamentos. É o Brasil dos subsídios, o que não faz o menor sentido. E apesar de o nosso modelo de Saúde ter sido inspirado no inglês, temos, hoje, um sistema mais privado que o norte-americano e que dedica poucos recursos. Ao fazermos a conta utilizando taxas de câmbio adequadas, cuidando da paridade do poder da moeda, o sistema inglês gasta, per capita, seis vezes mais do que o nosso — e está em crise. Vejo o governo discutindo cortes. Sinceramente, é coisa pequena. Chegar a um saldo primário zero daqui a três anos não resolve, porque o juro continua rodando. Não repensar as prioridades na Segurança, na Educação, na Saúde — para falar dos mais gritantes — é criminoso. É preciso muito dinheiro. A necessidade de ajuste de prioridade é maior do que o ajuste fiscal que a macroeconomia exige, mas isso está fora do radar. O que resolve é uma discussão muito mais profunda sobre a qualidade do nosso Estado, sobre para onde os recursos vão, de forma que o País possa se desenvolver plenamente. Somos um país absurdamente desigual. Mas como tratar dessa condição, a meu ver, infelizmente, está fora do radar, isso me preocupa bastante.

ESTE DEBATE FAZ PARTE DA EDIÇÃO #482 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.

CONFIRA TAMBÉM EM VÍDEO NO CANAL UM BRASIL:

Mediação de Humberto Dantas, com edição de Dimalice Nunes UM BRASIL
Mediação de Humberto Dantas, com edição de Dimalice Nunes UM BRASIL
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