Imobilidade urbana

09 de dezembro de 2025

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O analista de planejamento comercial Diego Patrick Oliveira trabalha em um renomado shopping center na região da Avenida Faria Lima. Sua jornada diária para chegar até lá, porém, está longe do glamour do estereótipo “Faria Limer” — adepto do patinete e da bicicleta como meio de transporte. Morador da Vila Carmosina, no extremo leste da capital paulista, Diego gasta, em média, uma hora e 50 minutos para percorrer os 30 quilômetros que separam a sua casa do local de trabalho. “Saio de casa às 6h10, sem tomar café da manhã. Sempre com uma espera de 10 a 15 minutos, pego um ônibus lotado até a estação Itaquera do Metrô, desço na estação Anhangabaú, tomo outro ônibus no Terminal Bandeira, que me deixa em frente ao shopping. Lá, tomo café da manhã antes do início do expediente, às 8h”, conta Diego.

Duas vezes por semana, o analista tem aulas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). “Caminho por 20 minutos até a estação Faria Lima do Metrô, desço na estação Butantã e pego o ônibus gratuito até a USP. As aulas vão até 22h30, mas saio uma hora antes para poder chegar em casa às 23h30”, continua o analista. Ele atribui o quadro a um descompasso histórico no desenvolvimento da cidade, que afastou as classes mais carentes do local de trabalho, e ao descaso do Poder Público em oferecer mais ônibus e novas linhas de metrô. “As condições são insalubres, mas é o único tempo para ler os livros da faculdade”, pondera.

O desconforto para percorrer as distâncias nas cidades atinge a sociedade de forma geral, em especial nas grandes metrópoles. Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, 87% dos paulistanos sonham em perder menos tempo no deslocamento diário, dos quais 6 em cada 10 optariam por uma hora livre a mais por dia do que uma renda 10% maior. A pesquisa revelou, ainda, que as queixas por falta de tempo em razão da precária mobilidade urbana são mais latentes entre pessoas de baixa renda, mulheres e pessoas negras.

Tão longe, tão perto

A pesquisa mostra também que 79% da população entende que muitas linhas de ônibus seguem rotas que aumentam desnecessariamente o tempo do trajeto. É o caso da diarista Edis Roma, moradora da Vila Fátima, no distrito de Sapopemba, extremo leste da capital paulista, que trabalhou por dois anos numa casa em Cidade Tiradentes, bairro também na zona leste. Em linha reta, são 15 quilômetros, que podem ser percorridos em 45 minutos por carro. Por falta de modais conectados, ela gastava cerca de duas horas em baldeações de ônibus para chegar ao destino.

Nas demais capitais brasileiras, a situação é semelhante. Em meados de setembro, a organização Rede Nossa São Paulo divulgou a pesquisa Viver nas Cidades: Mobilidade Urbana, desenvolvida pelo Instituto Cidades Sustentáveis em parceria com o Ipsos-Ipec, em dez capitais — São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Goiânia, Fortaleza, Belém e Manaus. No geral, 53% dos entrevistados disseram perder entre uma e quatro horas em deslocamentos diários no transporte individual ou coletivo, enquanto apenas 21% gastam até uma hora nos trajetos. A campeã é Manaus, com 57% dos entrevistados declarando gastar mais de uma hora em deslocamentos, seguida por Salvador, com 55%. São Paulo e Rio de Janeiro registraram índices de 54% e 53%, respectivamente.

A preferência pelo tipo de transporte varia de capital a capital. A média nacional de uso do carro é de 18%, mas em Goiânia é de 41%. Já o sistema de Bus Rapid Transit (BRT, na sigla em inglês, ou “trânsito rápido por ônibus”) é o preferido dos moradores de Belém (42%), Rio de Janeiro (41%) e Belo Horizonte (40%). O metrô é opção em apenas sete capitais — São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Fortaleza —, com destaque para a capital paulista, com 16% dos deslocamentos, ainda atrás do ônibus (31%) e do carro (20%).

Segundo Igor Pantoja, coordenador de Relações Institucionais do Instituto Cidades Sustentáveis e da Rede Nossa São Paulo, a superlotação, as longas esperas nos pontos de ônibus e o número crescente de atrasos e falhas, especialmente nas linhas de metrô e trem concedidas à iniciativa privada, são os principais problemas enfrentados pela população da Grande São Paulo. “Nas maiores cidades globais, uma autoridade concentra as decisões sobre todos os modais. Em São Paulo, essas decisões são pulverizadas. Pelo modelo atual, a concessionária de uma rede de metrô tem regras próprias de funcionamento, não estão articuladas com as normas dos trens, tampouco das companhias de ônibus. Não há políticas que envolvam o Estado e as prefeituras”, pontua.

Diante desse descompasso, Pantoja ressalta que a privatização nem sempre é o caminho indicado. “A Cidade do México é o exemplo mais próximo de São Paulo. Mesmo com uma rede de metrô bem maior e barata, vive superlotado, tem panes constantes por falta de manutenção e não está integrada com outras soluções. Os ônibus são antigos e poluidores e não há corredores. Faltou investimento público”, lamenta. Soluções como o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e o BRT podem ser viáveis, sustenta o especialista, mas, numa cidade com as características de São Paulo, devem ser complementares às redes de ônibus e de metrô existentes.

Na ponta do lápis

De acordo com levantamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a estrutura de transporte urbano brasileira necessita de investimentos de R$ 500 bilhões até 2054. O estudo mapeou 194 projetos de transporte coletivo de média e alta capacidades e concluiu ser fundamental dobrar o tamanho do sistema de metrô e quadruplicar os de BRT e VLT.

O estudo do BNDES revelou, ainda, que 43% dos passageiros migraram, entre 2014 e 2023, do transporte público para o individual, principalmente para motos próprias e para aplicativos, de carros ou motos, em busca de deslocamentos mais rápidos. Na capital paulista, o prefeito Ricardo Nunes e a Uber Motos vivem uma queda de braço em torno da regularização do serviço, considerado de alto risco de acidentes pelas autoridades municipais.

Com 49 anos de experiência em mobilidade urbana, o engenheiro Sérgio Ejzenberg, mestre em Transportes pela Escola Politécnica da USP, é enfático: “A melhor solução é um metrô subterrâneo que permita conexões entre as linhas, sem passar pelas áreas centrais, com terminais de ônibus e modais complementares, como o BRT, e até mesmo ciclovias”, opina.

O cálculo existe, especialistas dizem o que deve ser feito, mas como fechar a conta? De acordo com Ejzenberg, o modelo indicado para as metrópoles é a Parceria Público-Privada (PPP), a exemplo do que ocorre na Linha 4-Amarela do Metrô ou nas linhas de trem 8-Diamante e 9-Esmeralda, que servem a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). No entanto, no momento atual, o engenheiro é cético quanto a fórmulas mágicas. “É fato que não há dinheiro público para transporte urbano. Investir em transporte de massa é um negócio de longo prazo, com contrato de 30 anos — o equilíbrio vem a partir do décimo ano. E precisa haver um clima de segurança jurídica, confiabilidade política e ambiente de negócios. Hoje, nenhum grupo vai investir”, enfatiza.

Na mesma linha, André Sacconato, economista da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), defende o investimento no metrô por meio de PPPs. “Pesquisas apontam que as pessoas não abandonam o carro pelo ônibus, mas trocam pelo metrô, que é mais seguro e previsível”, avalia. Com base nas últimas décadas, o economista entende estar claro “que o Poder Público não tem condições de fazer grandes investimentos em transporte de massa”.

Pantoja, da Rede Nossa Paulo, vê a falta de recursos públicos, mas discorda que o caminho seja o privado. “Antes de mais nada, é preciso haver governança por meio de uma única agência controladora. A maior fluidez vem pela conexão entre os modais, independentemente de ser público ou concessionado”, argumenta.

De qualquer forma, Ejzenberg defende que a infraestrutura de transporte deve ser pensada paralelamente ao planejamento urbano. Um exemplo é a Linha Azul do Metrô, que liga os bairros do Jabaquara, na zona sul, ao do Tucuruvi, na zona norte. “No trecho subterrâneo, houve revitalização da Avenida Jabaquara. Por sua vez, no trecho norte, houve deterioração nas imediações da Avenida Cruzeiro do Sul”, pondera. Ações que priorizem o transporte individual, como o polêmico projeto de um túnel da Rua Sena Madureira, na zona sul, devem ser rechaçadas. “E o Minhocão [viaduto elevado que une o centro ao início da zona oeste] deve se demolido, com o espaço rearborizado e reaproveitado para corredor de ônibus e ciclovia”, propõe.

Cobrar dos carros?

Praticado com sucesso em algumas cidades do mundo, o pedágio urbano é visto com restrições. “Implantar essa essa estratégia sem transporte público decente é simples extorsão da população, que vai pagar por não ter alternativa viável”, observa Ejzenberg. Pantoja, por sua vez, até manifesta simpatia pela ideia, mas “não dá para cobrar de uma hora para outra, sem redesenho do trânsito da cidade”, ressalta.

Segundo Clarisse Cunha Linke, diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), a ideia é positiva, mas com condicionantes. “É uma forma de obter receitas a serem transferidas, obrigatoriamente, para investimentos no transporte coletivo, como é feito em Londres, Estocolmo e Singapura”, afirma.

Além da fluidez na mobilidade, acrescenta Clarisse, as propostas devem impacto ambiental, o que inclui uma nova cultura na redução do uso de carro, seja particular, seja por aplicativos — com alta considerada preocupante pela especialista —, tanto por causa da poluição quanto por disputar o espaço das vias com ônibus e bicicletas. “O aplicativo é fruto da precarização do sistema de transporte”, destaca. No curto prazo, sugere, o BRT é a solução mais adequada para conectar os moradores das regiões mais afastadas aos bairros centrais, porque o sistema permite um cronograma rápido de implantação. As vantagens são mais fluidez, previsibilidade e segurança do usuário na plataforma de embarque, apesar de os veículos utilizarem diesel. Essa questão, sinaliza a executiva, pode ser resolvida gradualmente com a troca dos veículos a diesel por elétricos.

Investimento que não anda

A rede de metrô da capital paulista, incluindo o monotrilho da Linha 15-Prata, tem 104,2 quilômetros. Somados aos trens integrados da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), o sistema conta com  270,6 quilômetros de trilhos, que transportam, diariamente, cerca de 8,5 milhões de pessoas por 18 municípios da RMSP, segundo a Secretaria dos Transportes Metropolitanos (STM) do Estado de São Paulo. É muito pouco para um território de 8 mil quilômetros quadrados e mais de 21 milhões de habitantes.

Para compensar o atraso histórico, o governo estadual anunciou o que chama de “maior investimento na história” na expansão da rede. Segundo a assessoria de imprensa da STM, atualmente, 19,3 quilômetros de linhas estão em construção pelo metrô, incluindo a expansão das linhas 2-Verde e 15-Prata, além da implantação da Linha 17-Ouro. Também estão em andamento projetos como as linhas 19-Celeste, que ligará os centros de São Paulo e Guarulhos (com abertura de propostas de obras neste trimestre), e 20-Rosa, cujo projeto básico foi iniciado neste ano para ligar a capital à região do ABC [formada pelas cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul], além de novas ampliações da Linha 2-Verde até Guarulhos (em projeto executivo) e da Linha 15-Prata até Cidade Tiradentes.

Quando concluídos, os investimentos ainda serão insuficientes para que o município de São Paulo mude de patamar. Segundo estudos internacionais, a relação ideal é que haja 50 quilômetros de metrô para cada 1 milhão de habitantes, ou 1 quilômetro para 20 mil pessoas. Só na capital paulista, com 11,45 milhões de pessoas, a rede deveria ter mais de 600 quilômetros de metrô. Hoje, a relação é de cerca de 110 mil habitantes para cada quilômetro de metrô, proporção cinco vezes maior que a de Paris e 12 vezes maior que a de Madri. Isto é, o drama vivido por Diego e Edis está longe de ter fim.

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #489 (NOV/DEZ) DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA, DISPONÍVEL AQUI.

Guilherme Meirelles
Annima de Mattos
Guilherme Meirelles
Annima de Mattos