Fogo cruzado

04 de setembro de 2020

Segundo diplomatas, ao abandonar a vocação histórica de neutralidade, o Brasil se coloca em rota de colisão entre os seus interesses econômicos e as convicções ideológicas. O resultado das eleições norte-americanas, em novembro, pode exigir do País um rearranjo na diplomacia

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A partir da Queda do Muro de Berlim, em 9 de novembro de 1989, os Estados Unidos se isolaram soberanos como a maior potência mundial, exercendo fortes influências direta e indireta sobre os países ocidentais. No entanto, nos últimos anos, isso vem mudando: a China se tornou uma potência, emergindo no cenário mundial como uma força que desafia a hegemonia norte-americana.

Na última década, os chineses reconfiguraram o comércio internacional, passando a ser os principais parceiros para muitos países, até mesmo os Estados Unidos. Mais recentemente, os avanços na tecnologia e na produção farmacêutica, impulsionadas pela pandemia, reforçaram a primazia chinesa. Nesse cenário, os Estados Unidos criaram uma série de sanções contra os chineses, que rebateram na mesma moeda, dando início a uma guerra comercial. No início deste ano, ambos assinaram um acordo para aliviar as tensões no comércio internacional.

Segundo Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-1999) e em Washington (1999-2004), que estava em solo norte-americano quando foi editada a doutrina de segurança nacional pelo presidente George W. Bush, em 2003, desde então, os Estados Unidos passaram a reagir a qualquer ameaça que afetasse os seus interesses nacionais. “Em decorrência dessa visão, hoje, o establishment norte-americano considera a China como um adversário que ameaça os interesses concretos nas áreas comercial, tecnológica, militar e estratégica”, aponta Barbosa.

“Não podemos tomar partido na disputa entre Estados Unidos e China, temos que ter nossa identidade mantida. Os países não têm amigos, têm interesses. A agenda de costumes fez o Brasil ficar isolado em organismos internacionais, ao lado de países conservadores. Há um crescente isolamento do Brasil.” Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e em Londres

No meio desse fogo cruzado está o Brasil, que mantém importante relação comercial com o gigante oriental – importador de 33% de toda a produção das commodities brasileiras e principal investidor internacional.

A política externa adotada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, porém, está alinhada à ideologia de Donald Trump, que sistematicamente ataca o governo chinês. O apoio brasileiro a Trump até rendeu avanços importantes para o Brasil, como o acordo de salvaguarda tecnológica, que vai permitir a utilização do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) para o envio de satélites, o apoio dos norte-americanos ao ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e também o posicionamento norte-americano colocando o Brasil como parceiro estratégico na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

De acordo com Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil na Argentina (1992-1997) e na França (1997-2003), mesmo com estes fatos positivos, o lado brasileiro ainda não teve o retorno esperado. “Nenhum dos atos demonstrados pelo atual presidente brasileiro com os Estados Unidos se justifica, pois não são acompanhados de contrapartidas.”

Os diplomatas ressaltam que os Estados Unidos já adotaram uma série de medidas negativas. Por exemplo: suspenderam a importação de 80% da produção brasileira de aço; apresentaram um candidato norte-americano à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), não prestigiando Rodrigo Xavier, o candidato brasileiro; fizeram pressão sobre o etanol nacional para eliminar tarifas; e não atenderam ao pedido brasileiro para facilitar os vistos de entrada da população ao território norte-americano. Outro fato relevante foi o adiamento do leilão da tecnologia 5G para o ano que vem, após declarações do embaixador dos Estados Unidos no Brasil,  Todd Chapman, que o País poderia sofrer “consequências econômicas negativas” se mantiver a chinesa Huawei no certame.

“O adiamento do leilão do 5G não traz nada de bom ao Brasil, nem resolve a questão norte-americana, apenas adia uma decisão que deve ser tomada, porque a empresa chinesa apresentou a melhor qualificação”, aponta Barbosa. Neste embate, os Estados Unidos buscam dificultar a entrada da empresa chinesa no País, mas não apresentam uma alternativa nacional, pois não conta com a tecnologia do 5G. “Apenas empresas europeias e chinesas a possuem. Essa tecnologia vai revolucionar a modernização das indústrias brasileiras, portanto, a sua aquisição é fundamental para os interesses nacionais”, afirma Barbosa.

Para Azambuja, a postura brasileira de submissão aos interesses norte-americanos é uma cartada errada na busca por acordos vantajosos. “A ingenuidade é um pecado grave em diplomacia. É muita ingenuidade acreditar que uma disposição amistosa, além do interesse nacional, fará os países agirem de maneira benévola ou não, de acordo com as simpatias pessoais”, diz.

Ruptura histórica

Tradicionalmente, o Brasil é conhecido pela comunidade internacional como uma nação multicultural, que respeita acordos internacionais de preservação dos direitos humanos e do meio ambiente. No último ano, essa postura mudou radicalmente, com o País posicionado ao lado de outros mais conservadores. “O governo atual elegeu três países como prioritários na relação bilateral: Estados Unidos, Israel e Chile”, aponta Barbosa. O ex-embaixador afirma ainda que, nesse período, cresceram as críticas dos representantes brasileiros à China, e a agenda de costumes adotada fez o Brasil se isolar em organismos internacionais.

Segundo Azambuja, “o Brasil abandonou a visão de si mesmo como uma potência multinacional, multirracial, multi-ideológica, multirreligiosa, para ser um país sectário, correspondendo apenas a uma visão limitada do seu interesse”.

Com a crise econômica provocada pela pandemia, as consequências da subserviência brasileira aos Estados Unidos podem ser ainda mais desastrosas para os interesses nacionais, uma vez que os países emergentes tendem a enfrentar dificuldades para se recolocarem no mercado mundial.

“Existe um cenário de muita preocupação de como os países vão se sair depois da pandemia. Até a China, que crescia 7% ao ano, pelas projeções deve crescer apenas 1% em 2020”, projeta Barbosa. Segundo o boletim Focus, divulgado pelo Banco Central no fim de agosto, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve recuar 5,28% neste ano, enquanto o governo espera crescimento de 3,2% no PIB em 2021.

Na área do comércio exterior, os dados da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostram uma queda dramática entre 10% e 15% no comércio internacional nos próximos meses.

“A ingenuidade é um pecado grave em diplomacia. É muita ingenuidade acreditar que uma disposição amistosa, além do interesse nacional, fará os países agirem de maneira benévola ou não, de acordo com as simpatias pessoais.” Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil na Argentina e na França

Postura neutra

No início de setembro, os Conselhos de Economia Empresarial e Política (CEEP) e de Relações Internacionais (CRI) da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) debateram os efeitos da disputa entre Estados Unidos e China na economia brasileira. A reunião contou com a participação de Barbosa e Azambuja, além de economistas e empresários.

Para o presidente do Conselho de Relações Internacionais e vice-presidente da Federação, Rubens Medrano, a neutralidade deve ditar o posicionamento do Brasil na política externa, preservando os parceiros estratégicos, independentemente das ideologias. “Os interesses dos brasileiros devem ser considerados prioridade, em detrimento aos interesses do governo, pois o Estado é perene, e os governos, transitórios”, aponta.

Seguindo a mesma visão, Barbosa afirma que “os países não têm amigos, têm interesses”, sendo que o Brasil não deveria tomar partido na disputa entre as duas maiores potências mundiais, mantendo a sua identidade e defendendo os seus interesses.

Os presidentes do CEEP,  Antônio Lanzana e Paulo Delgado, reforçaram a importância dos Estados Unidos e da China para a economia brasileira atual, considerando qualquer rompimento como desastroso. “De janeiro a julho deste ano, Estados Unidos e China, juntos, foram responsáveis por 43% das exportações brasileiras e 37,5% das importações”, diz Lanzana.

Segundo Azambuja, o Brasil deve saber se posicionar neste novo cenário mundial. “Estamos nos tornando uma superpotência agropecuária, que nos faz a segunda ou terceira economia do campo no mundo, portanto, as decisões externas têm de levar em consideração a multiplicidade dos nossos interesses”, afirma.

Destino nas urnas

As eleições norte-americanas, que acontecem em novembro, podem esbaralhar os jogos político e comercial no mundo, caso o candidato opositor, Joe Biden, vença Donald Trump. “Se Biden ganhar, a confrontação com a China tende a continuar, mas vai mudar a sua forma. Biden deve identificar algumas áreas de cooperação com a China”, diz Barbosa.

No Brasil, as consequências de uma eventual derrota de Trump podem ser muitas. Para Barbosa, a vitória democrata pode significar o fim da relação especial que existe entre os atuais governos, e o Brasil corre o risco de ficar cada vez mais isolado nos órgãos internacionais, se mantiver a postura conservadora. “Os Estados Unidos tendem a retornar ao Acordo de Paris e à Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, Kamala Harris, candidata a vice-presidência, tem posições críticas ao Brasil em relação aos direitos humanos e à política ambiental. Então, se Biden ganhar, a percepção externa ficará ainda mais complicada em relação ao Brasil.”

Institucionalmente, porém, o escolhido para comandar os Estados Unidos, seja quem for, deve continuar considerando o Brasil como baixa prioridade. Segundo Barbosa, o presidente Trump adotou uma nova doutrina para os países do Hemisfério Sul e não há nenhuma referência ao País, sendo citados apenas Venezuela, Nicarágua e Cuba.

Ainda que a disputa entre Estados Unidos e China perdure por muitos anos, Azambuja indica que o País deve aproveitar o seu peso econômico, que não tinha em tempos passados, para ser protagonista na moderação entre os países. “O que mais me preocupa é que, agora, que deveríamos ter uma política externa com mais astúcia, sabedoria e realismo, mas parece que o Brasil está sendo conduzido por impulsos afetivos.”

Filipe Lopes Paula Seco
Filipe Lopes Paula Seco