Volta completa pela Antártica

14 de fevereiro de 2025

A

Após 70 dias de pesquisas científicas no extremo Sul do planeta, o navio russo Akademik Tryoshnikov atracou, na manhã de 31 de janeiro, no Porto de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. A data marca o fim da Expedição Internacional de Circum-Navegação Costeira Antártica (ICCE, na sigla em inglês), liderada por pesquisadores brasileiros. O objetivo era investigar os efeitos das mudanças climáticas na camada de gelo da Antártica.

Nos tempos modernos, o continente foi circum-navegado apenas uma vez, entre 2016 e 2017. Além disso, a ICCE foi a primeira que fez a circum-navegação costeira do continente — o mais próximo que uma viagem de pesquisa do tipo já esteve da própria geleira continental.

No dia 22 de novembro de 2024, 57 cientistas de sete países partiram do Porto de Rio Grande a bordo do Akademik Tryoshnikov com o propósito de enfrentar as águas mais desafiadoras do planeta. A jornada de 29.316 quilômetros ao longo da costa antártica consistiu, em grande parte, na coleta de amostras e medições, com pesquisadores de diversos campos mapeando a região para descobrir como o continente foi afetado pelas mudanças climáticas.

A importância do gelo

Em linhas gerais, as investigações da expedição podem ser divididas em três campos de estudo: atmosférico, geológico e oceanográfico. Para isso, rotineiramente, foram medidos fenômenos como a concentração de Gases de Efeito Estufa (GEE) na atmosfera, a temperatura e os níveis de oxigênio da água oceânica, além de coletadas amostras de neve e gelo de diferentes pontos a fim de pesquisar o passado e o presente do clima da Antártica.

Os núcleos do gelo da Antártica fornecem um registro detalhado da história climática da Terra, muitas vezes abrangendo centenas de milhares de anos. Ao analisar bolhas de ar presas no gelo, por exemplo, os cientistas podem reconstruir níveis passados de absorção de GEE, como dióxido de carbono e metano, bem como variações históricas de temperatura. 

A Antártica também é de extrema importância quando o assunto é o aumento global do nível do mar. O continente, que é 1,5 vez maior que o Brasil, abriga 90% do gelo do mundo, retendo 60% da água doce do planeta. Mudanças na estabilidade dessas camadas de gelo — um dos principais objetos de estudo da ICCE — podem ter grandes implicações nos níveis dos oceanos.

As águas ao redor da camada de gelo também são importantes para a absorção de dióxido de carbono, e qualquer mudança na capacidade de captação desse gás pode levar a um rápido aumento na temperatura global.

O diário de Glacier Frankie

Depois de lidar com as frequentes mudanças de fuso horário da circum-navegação da Antártica — e uma tempestade particularmente desagradável em 20 de janeiro, que deixou insone a maior parte da tripulação e elevou o consumo de medicamentos para enjoo —, o climatologista Francisco Eliseu Aquino, chefe do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e um dos coordenadores da expedição, conversou com o Brazilian Report.

Segundo Aquino, para aqueles que estão acostumados a longas expedições antárticas, como ele, que estava em sua 18ª viagem ao continente, a ICCE, em particular, não apresentou novos desafios. “É exaustivo, mas nosso desejo de completar a missão é maior”, afirma. Mas, mesmo para um “lobo-do-mar” como Aquino — ele é tão experiente na região que seus colegas o apelidaram de Glacier Frankie —, essa expedição foi especial. “Nunca pensei que um dia poderia circum-navegar a Antártica. Coletamos amostras de lugares que eu nunca sonhei em visitar”, comemora.

A rotina durante a expedição consistiu em navegar ao longo das camadas de gelo, com pausas planejadas em determinados locais, para que as equipes de pesquisa realizassem viagens menores para a coleta de amostras. No entanto, nem tudo aconteceu como programado, já que as condições climáticas causaram atrasos em alguns trechos. 

A imprevisibilidade do clima também deixou as festas de fim de ano mais tensas para a equipe de Aquino:

“Na tarde de 24 de dezembro, nossa equipe estava em missão de amostragem em uma geleira, e o plano era que o helicóptero nos buscasse algumas horas depois, por volta das 19 horas. Mas as condições meteorológicas mudaram rapidamente e a geleira ficou coberta de neve e nuvens brancas. O helicóptero não podia nos encontrar. Podíamos ouvi-lo voando, mas não enxergávamos nada. Nessa tempestade, com ventos em torno de 85 quilômetros por hora, tomamos a decisão estratégica de montar a barraca e fazer abrigo. Foi ali que passamos o Natal. Oito de nós em uma pequena tenda. Tínhamos água e comida e foi divertido, apesar de um pouco apertado. Só puderam nos buscar na manhã de 26 de dezembro.”

A véspera de ano-novo foi menos caótica. “Passamos no navio, com pessoas de nacionalidades diferentes, fizemos a contagem regressiva à meia-noite de cada fuso horário dos presentes e compartilhamos tradições e costumes de Réveillon”, lembra o pesquisador. Além dos brasileiros que lideraram a expedição, a tripulação a bordo do Akademik Tryoshnikov incluiu cientistas da Argentina, do Chile, da China, da Índia, do Peru e da Rússia.

Naquele momento, os cientistas a bordo já estavam de olho na linha de chegada. E o professor Aquino sabe do que sente mais falta quando não está em terra firme: “A comida. Sinto falta da comida caseira brasileira. É um dos assuntos mais comuns a bordo”, comenta. 

O desembarque, porém, marca apenas uma etapa da longa jornada da pesquisa científica. Em seus laboratórios e escritórios, será hora de transformar o que foi observado em conhecimento. Os artigos científicos que terão como base as descobertas da expedição, provavelmente, levarão cerca de dois anos para chegar às páginas das revistas científicas. No entanto, resultados preliminares da expedição, segundo Aquino, serão divulgados já ao longo de 2025.

A publicação deste conteúdo é fruto de parceria entre a Revista Problemas Brasileiros e o portal The Brazilian Report. Acesse aqui o material original, em inglês.

Euan Marshall | The Brazilian Report Débora Faria
Euan Marshall | The Brazilian Report Débora Faria