Aos poucos, os veículos eletrificados (híbridos ou totalmente elétricos) já ganham as ruas com mais intensidade, impulsionados pela modernização da tecnologia das montadoras, conforto e, principalmente, o conceito de sustentabilidade ambiental, em demanda crescente entre a população e os governos.
Pioneiro na fabricação de automóveis com tecnologia totalmente brasileira, o empresário João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, fundador da marca de veículos Gurgel, também foi o responsável por introduzir os carros elétricos no Brasil. Em 1974, Gurgel apresentou no Salão do Automóvel o Itaipu E150, protótipo do primeiro automóvel totalmente movido a eletricidade, algo então desconhecido dos brasileiros.
O Itaipu E150, nome em homenagem à usina hidrelétrica de Itaipu, que estava em construção na época, tinha capacidade para apenas dois lugares, 30 quilômetros por hora e autonomia para rodar 50 quilômetros a cada carga na bateria. O protótipo não chegou a entrar na linha de produção da Gurgel e as poucas unidades construídas viraram item de colecionador.
Em 1980, Gurgel tentou de novo, e apresentou o Itaipu E400, um furgão elétrico que chegou a ser fabricado pela Gurgel na sua fábrica em Rio Claro (SP), mas saiu de linha dois anos depois. Foram produzidas cerca de mil unidades do modelo, adquiridas por empresas como a Telecomunicações de São Paulo (Telesp) – estatal paulista extinta após a privatização dos serviços de telefonia no País – e a Telecomunicações Brasileiras S.A. (Telebrás). O furgão tinha 80 quilômetros de autonomia na bateria, que levava dez horas para recarregar.
Mais de quatro décadas depois, o sonho de Gurgel finalmente começa a engrenar no Brasil. Com o consumidor cada vez mais exigente em relação às boas práticas ambientais, montadoras multinacionais como a General Motors anunciam a aposentadoria dos motores à combustão de seus veículos novos, nos próximos anos. E os reflexos dessas novas políticas de mobilidade baseadas na baixa emissão de carbono chegam ao País.
O Brasil possui hoje cerca de 45 mil veículos leves eletrificados circulando nas ruas, entre híbridos (dotados com motor a combustão e elétrico) e os 100% elétricos. Ônibus e caminhões não estão nessa conta. Os números são da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), com base no Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam). Em 2020, segundo a ABVE, as vendas de veículos eletrificados bateram novo recorde, com aumento de 66,5% nos emplacamentos em relação ao ano anterior. Foram 19.745 unidades vendidas em 2020 ante 11.858 comercializadas no ano anterior.
Os eletrificados novos vendidos em 2020 atingiram, pela primeira vez, cerca de 1% do total de veículos leves emplacados no País no mesmo período – 1.950.889, segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). A tendência é que os bons resultados se repitam este ano.
Apenas nos dois primeiros meses de 2021 já foram comercializados 2.710 automóveis eletrificados (1.321 em janeiro e 1.389 em fevereiro), segundo a ABVE. “Nesses tempos de covid-19, o consumidor brasileiro fez uma aposta clara nos veículos não poluentes e sustentáveis. Optou por proteger a sua saúde e a saúde da sociedade”, afirma Adalberto Maluf, presidente da ABVE. “Os eletrificados mostram o seu potencial, em nítido contraste com a evolução do mercado como um todo”, completa Maluf, lembrando que o mercado geral de automóveis no Brasil passou por uma retração no ano passado, e as perspectivas não são promissoras para este ano.
Em contrapartida, os números da ABVE apontam uma curva de crescimento vertiginosa de elétricos e híbridos no Brasil, nos últimos anos. As vendas de 2020 representam crescimento de 66,5% sobre 2019; 397% sobre 2018 (quando foram vendidas 3.970 unidades); 499% sobre 2017 (3.296) e 1.709% sobre 2016 (1.091).
“Por um lado, devemos comemorar o fato de os elétricos terem chegado a 1% do mercado. É uma marca simbólica importante”, diz Antonio Calcagnotto, diretor de Veículos Leves da ABVE e diretor de Relações Institucionais e Sustentabilidade da Audi do Brasil. “Mas ainda estamos muito distantes de uma participação expressiva no mercado total. Portanto, temos de insistir em medidas de apoio à mobilidade elétrica”.
Para efeitos de comparação, em 2020 foram vendidos na Europa mais de um milhão de veículos eletrificados novos (híbridos e elétricos puros), segundo a Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (ACEA, na sigla em inglês). Na Noruega, um dos campeões mundiais em eletrificação de veículos, a venda de motores elétricos supera a de motores movidos à combustão. Nos Estados Unidos, o governo federal pretende substituir gradualmente toda a frota oficial por elétricos – cerca de 645 mil veículos.
As montadoras também anunciam metas de substituição gradual dos motores à combustão por energia mais limpa. A General Motors (GM) pretende deixar de vender veículos novos com motor à combustão até 2035. No Brasil, a GM oferece o importado Chevrolet Bolt EV, um dos líderes de vendas entre os 100% elétricos e com preço em torno de R$ 270 mil. Lançado em 2018 no Salão do Automóvel, foram vendidas mais de 120 unidades desde o lançamento.
“O sucesso do Bolt EV nos encoraja a continuar investindo em novidades. Temos planos de crescer nossa oferta nos próximos anos, assim como nossa rede de concessionárias habilitadas para comercializar e oferecer manutenção a veículos com esta tecnologia”, diz Paulo Leandro Santos, gerente de Marketing de Produto da GM.
Outras montadoras também apostam no mercado brasileiro para os próximos anos. A BMW oferece atualmente dois modelos elétricos, ambos importados: o BMW i3 (com preços a partir de R$ 279.950,00) e o MINI Cooper SE 3 portas (a partir de R$ 239.990,00).
O crescimento de forma representativa do mercado de veículos elétricos no País favorece a introdução de mais opções de modelos disponíveis e preços competitivos, explica Gleide Souza, diretora de Relações Governamentais da BMW do Brasil. “Temos a sustentabilidade como ponto focal do nosso negócio e, por isso, estamos caminhando para que, até 2030, 50% das vendas de veículos do BMW Group sejam de modelos elétricos”, diz Gleide. Em 2020, a BMW vendeu 1.132 carros com propulsão elétrica ou híbrida no Brasil, mais de 300% do que em 2019, quando foram vendidas 300 unidades. Para 2021, a montadora pretende manter ou superar o índice.
De acordo com os especialistas, entre os principais entraves para que o mercado de eletrificados deslanche por aqui estão a falta de incentivos do governo – em outros países há fortes incentivos estatais para a adoção de energias limpas nos carros – e o preço ao consumidor final, já que os cerca de 15 modelos disponíveis são importados e, em alguns casos, chegam a custar o dobro do similar à combustão.
“Em países como Alemanha, França e Portugal as pessoas ganham bônus do governo quando compram carros elétricos. Em Portugal, os postos de recarga das baterias são gratuitos”, explica Henry Joseph Júnior, diretor-técnico da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). “Não há dúvidas de que, no futuro, os veículos serão elétricos, que possuem tecnologia muito mais simples e manutenção mais barata. O problema do elétrico ainda é como levar a eletricidade junto em viagens”, completa Joseph.
A infraestrutura necessária para recarregamento das baterias é justamente um dos nós a serem desatados para expansão das novas tecnologias, principalmente em viagens longas. “Existem cerca de 350 pontos de abastecimento de baterias nas estradas e nas rodovias. Isso não é nada para um país com a extensão do Brasil”, diz Vivaldo Breternitz, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Faculdade de Computação e Informática da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“É o dilema do ovo ou da galinha: a infraestrutura de abastecimento não existe porque não há muitos carros elétricos ou não há muitos carros elétricos pela falta de infraestrutura?”, indaga o professor, que cita outras questões que ainda devem ser melhoradas para a popularização dos elétricos, como a fabricação em escala por parte das fábricas e montadoras – para diminuir o preço do veículo ao consumidor final –, especialização de oficinas mecânicas e o descarte correto de baterias usadas.
Apesar do preço do veículo ainda ser alto, Breternitz aponta vantagens que acabam compensando a substituição. “O carro elétrico é mais econômico. Enquanto o custo médio para rodar cem quilômetros com energia elétrica é de R$ 12, os mesmos cem quilômetros custam R$ 50 de gasolina”, compara.
A redução expressiva dos gastos com combustível também é apontada como vantagem por Rogério Markiewicz, presidente da Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos Elétricos Inovadores (Abravei). “A economia com combustível é brutal e compensa o custo inicial do automóvel”, diz Markiewicz. Segundo ele, o grande entrave para a entrada do consumidor nos eletrificados é no segmento mais popular. “Mas no mercado de luxo, os preços das duas versões de automóveis já são praticamente os mesmos”, diz.
Para Markiewicz, que possui um Chevrolet Bolt 100% elétrico, o abastecimento do carro não chega a ser um problema, já que o plug pode ser ligado em uma tomada simples de 110 ou 220 volts, na garagem de casa. A bateria plugada durante a noite é o suficiente, segundo ele, para circular no dia seguinte, sem problemas. “Para a locomoção no meio urbano, não há problemas”. O presidente da Abravei destaca outras economias, como não precisar de troca de óleo e o mais lento desgaste das pastilhas de freio. “A única manutenção do carro que tive de fazer em cinco anos foi trocar os filtros de ar-condicionado”, afirma.
O desenvolvimento da mobilidade eletrificada ganha o apoio de empresas ligadas diretamente ao setor de energia elétrica. A Enel apoia diversos projetos de utilização de ônibus eletrificados em países como Chile e Colômbia. “Oferecemos as soluções de eletrificação para os ônibus, como recarga e gestão da bateria”, conta Paulo Roberto Maisonnave, head de mobilidade da Enel no Brasil.
A empresa desenvolve parcerias com prefeituras de cidades brasileiras, como São Paulo (SP), para projetos de eletrificação das frotas de ônibus. “O Brasil tem um enorme potencial de eletrificação, já que é o principal mercado de ônibus da América Latina”, diz Maisonnave. “Isso vai proporcionar um serviço de melhor qualidade para a população, pois são ônibus mais confortáveis, menos poluentes e mais econômicos”.
Montadoras de ônibus apostam no nicho de elétricos, principalmente urbanos. A Marcopolo, uma das maiores fabricantes de ônibus do mundo, investe em veículos com propulsão elétrica. A companhia, com sede em Caxias do Sul (RS), já entregou 375 veículos elétricos e híbridos em diversos países, como Argentina, Austrália e Índia. Destes, 75 ônibus estão circulando em cidades brasileiras, como São Paulo e São José dos Campos, e outros 400 devem ser entregues em 2021 para toda a América Latina.
Na capital paulista, os elétricos começam a se expandir para outras áreas, além do transporte público. A Prefeitura de São Paulo desenvolve um projeto piloto com caminhões de coleta de lixo 100% elétricos. São oito caminhões que, desde o ano passado, realizam a coleta de resíduos de varrição e feiras livres na Região Leste da cidade. No Centro, dois triciclos elétricos auxiliam na coleta de sacos de lixo que os agentes de limpeza deixam após a varrição. Os triciclos têm autonomia para rodar até 80 quilômetros por dia e capacidade de armazenamento de 500 quilos.
Os eletrificados também surgem nas locadoras de automóveis. A Movida adquiriu 70 modelos Nissan LEAF para a sua frota. Eles foram distribuídos para as lojas de São Paulo, Guarulhos, Campinas e São Caetano. Outros 20 foram destinados para a filial no Rio de Janeiro.
“O elétrico é para quem deseja aliar os benefícios da locação com uma nova experiência de locomoção. Não deixa nada a desejar para um carro à combustão”, atesta o diretor de Planejamento de Receita da Movida, Rafael Tamanini.
Reportagem originalmente publicada na revista PB #464. A edição completa está disponível nas melhores bancas digitais: Bancah, Revistarias, Go Read e Press Reader.