“Deixe de ser trouxa, elas sempre se aproveitam de homem bonzinho.” “Como deixar de ser otário.” “Não siga nenhuma mulher.” Esses são alguns exemplos de um tipo de conteúdo que tem ganhado espaço nas redes sociais nos últimos anos: os canais com discursos misóginos. De 2018 a 2024, a média de publicação de vídeos que propagam o ódio contra as mulheres no Youtube saltou de cerca de 10 por dia para mais de 80 — e 88% desses conteúdos foram publicados apenas nos últimos três anos.
Os dados são de uma pesquisa do Observatório da Indústria da Desinformação e Violência de Gênero nas Plataformas Digitais, em parceria com a NetLab-UFRJ e o Ministério das Mulheres. As pesquisadoras encontraram 76.289 conteúdos, entre vídeos regulares, shorts, e transmissões ao vivo, espalhados por 7.812 canais. Juntos, eles somam 4,1 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários.
Entre todos esses canais, a pesquisa analisou o conteúdo daqueles que tinham ao menos três postagens com uma ou mais presença de discurso misógino. No total, foram identificados 137 canais, com mais de 105 mil vídeos produzidos. Os números de inscritos e visualizações impressionam: 152.426 assinantes, vistos 3,9 bilhões de vezes.
“Esses influenciadores não estão apenas transformando as redes sociais, de maneira geral, num espaço para defender suas ideias, para expor o lugar que acham que as mulheres devem ocupar. Eles transformaram isso em um negócio”, explica Luciane Belin, pesquisadora associada do Netlab. “Eles retratam as mulheres pejorativamente ou agressivamente, alguns incentivam a violência. E usam essas redes para ensinar os outros a fazerem o mesmo e ganharem dinheiro”, destaca.
De acordo com a pesquisa, 80% desses canais possuem alguma forma de lucrar com seus conteúdos, por meio da veiculação de anúncios, programas de membros e super chat, ferramenta que os fãs usam para deixar suas mensagens em destaque, pelo valor que eles mesmos definem. Há ainda outras formas de ganhar dinheiro: doações bancárias, criptomoedas, financiamento coletivo, e anúncios de outras plataformas para venda de livros e cursos. Um dos influenciadores cobra R$ 1 mil por “consulta individual” para homens interessados em aprender como melhorar sua “masculinidade”, sem cair no golpe de mulheres que, supostamente, querem subjugá-los — ou roubar seu papel de protagonismo na sociedade.
Para driblar as políticas de restrição de conteúdos ofensivos e não sofrerem penalizações, esses homens adotam uma série de estratégias: evitam palavrões, usam humor e ironia, e criam um vocabulário próprio. “Em vez de mulher, dizem colher, ou MSOL, que é mãe solteira. Eles cunharam essas expressões dentro desse universo, então os usuários sabem do que estão falando”, conta Luciane.
Embora a maior parte dos vídeos tenha sido publicada a partir de 2021, a adesão e popularização desses conteúdos intensificou-se em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil. “Infelizmente, esse aumento da misoginia foi legitimado institucionalmente. Nos grupos que monitorei, Bolsonaro era visto como o grande representante da ideia de ‘colocar as mulheres no seu devido lugar’. É importante frisar que a misoginia sempre existiu, mas a legitimação institucional agravou muito o cenário”, enfatiza a cientista social Bruna Camilo, que mergulhou na “machosfera” para escrever sua tese de doutorado.
Não à toa, o número de denúncias de misoginia online no Brasil pulou de 961 para 28,6 mil em cinco anos, entre 2017 e 2021, segundo a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, da associação SaferNet.
Segundo Bruna, nem mesmo as mulheres conservadoras são poupadas do ódio dos misóginos. “Alguns se diziam traídos por Bolsonaro porque ele havia colocado mulheres em seu governo — nem a Damares Alves [ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos] era poupada. Eles chamam essas mulheres de ‘conservadias’”, detalhou.
Tamanha aversão é uma contraofensiva às recentes conquistas do movimento feminista, com a eleição de mais mulheres para cargos legislativos e maior espaço de promoção profissional. “Eles sentem-se cada vez mais revoltados quando percebem que as mulheres ocupam mais espaço de poder, no mercado de trabalho, quando elas conquistam mais voz, mesmo que dentro de casa”, aponta Bruna. Segundo a pesquisadora, essa ofensiva é organizada, inclusive por esse ressentimento entre homens, eles acolhem-se. Para eles, as mulheres precisam voltar para séculos atrás, quando eram apenas donas de casa. “Elas precisam apenas reproduzir, não podem ter voz, nem direitos”, enfatiza.
A disseminação de discursos de ódio contra as mulheres, que estimulam a violência física e psicológica, refletem-se nos dados de feminicídio no País. Segundo pesquisa do Instituto Igarapé, casos de violência cresceram 10% nos últimos cinco anos. Entre 2022 e 2023, houve um aumento de 22% nos casos de agressões físicas. “Quando você pega um red pill [como são chamados os influenciadores misóginos] que tem sei lá quantos mil seguidores, a palavra dessa pessoa tem um alcance”, afirma Valeska Zanello, psicóloga e pesquisadora na área de saúde mental e gênero.
Segundo ela, esse discurso serve não apenas para continuar naturalizando, como também para reforçar a objetificação e a violação dos direitos das mulheres, de forma ainda mais intensa. “As emoções, os comportamentos, não são entidades fixas, mas sim dinâmicas, mediadas por aprendizado. Já atendi mulheres que contavam como seus namorados haviam mudado, ficado mais machistas, depois que começaram a ver vídeos de red pills”, revela Valeska. “Quando a gente tem essa circulação livre, com essa suposta ‘liberdade de expressão’, a gente tem um Estado ou um Judiciário que se coaduna com a perpetuação da violência contra as mulheres. E é o que tem acontecido”, assegura.
Com sedes no exterior, as big techs, detentoras das redes sociais, demonstram pouco comprometimento em barrar a propagação de conteúdos misóginos ou preconceituosos. A Meta, dona do Facebook, interrompeu, após o início do segundo mandato do presidente Donald Trump, o sistema de checagem de fatos nos Estados Unidos. Em substituição, adotou o mesmo modelo de Notas da Comunidade do X, o antigo Twitter, do bilionário Elon Musk — cabe aos usuários denunciar publicações enganosas ou violentas, tirando a responsabilidade da empresa de detectar e eliminar esses conteúdos.
Por mais que as diretrizes do YouTube determinem punições, como perda do direito à monetização quando há discurso de ódio, e banimento do canal em caso de recorrência, pouco é feito, afirma Luciane. “No relatório, citamos uma pesquisa que avaliou mais de 70 vídeos denunciados no mundo por divulgar conteúdos violentos e praticamente nada foi derrubado, vimos que 95% ainda estão no ar”, ressalta.
Do ponto de vista jurídico, não há nenhuma legislação brasileira em vigor que possa obrigar esses canais ou conteúdos a serem retirados do ar — a não ser para casos individuais, como os de divulgação de fotos ou vídeos íntimos. E, segundo as especialistas consultadas, excluí-los seria como enxugar gelo — é preciso mais do que isso: uma lei macro para regulamentar.
“No Brasil, há muita facilidade para aprovar leis punitivas, que criminalizam determinadas condutas individuais, mas existe dificuldade em aprovar legislações macro, que peguem a raiz do problema”, afirma a advogada Tainá Junquilho, especialista em inteligência artificial. “Temos dificuldade em obrigar essas empresas a terem um representante legal no País, o que é o mínimo. Por isso, precisamos de legislações que estabeleçam direitos genéricos, para termos mais transparência sobre as big techs, entender quem são os anunciantes, ter maior controle, cobrar responsabilidade das empresas, que se isentam, se dizem apenas ‘mediadoras’”, argumenta.
Tainá citou algumas iniciativas do governo, como a tentativa de criar regulamentações para controlar o mercado digital e criar uma espécie de Código de Defesa do Consumidor para a Internet, para proteger os usuários contra conteúdos prejudiciais. Mas ainda não há nada concluído.