Os bosques simétricos à la Versalhes, as estátuas de mármore branco que representam as estações do ano e figuras da mitologia greco-romana, a primeira linha de bonde da cidade, movido ainda à tração animal, uma casa de chá e um coreto em estilo neogótico projetado pelo alemão Maximilian Emil Hehl — o mesmo da Catedral da Sé — dão o tom do que um dia se projetou para o Jardim da Luz, no bairro do Bom Retiro, na região central de São Paulo.
Fundado como horto botânico para ser um viveiro de plantas, em 1800, quando o Brasil ainda era uma colônia portuguesa, o parque foi inaugurado ao público em 29 de outubro de 1825 e passou a ser chamado de “Passeio Público”, tendo como inspiração cidades como Londres, Florença e Paris. Ao contrário das praças, ponto de encontro de populares desde a Europa Medieval, os jardins públicos emulavam as áreas verdes privadas da aristocracia.
A ideia era “ver homens e mulheres bem-vestidos e bonitos, contar e ouvir novidades, assistir a apresentações musicais e mostrar filhas na busca de maridos”, conta Hugo Segawa, arquiteto e professor na Universidade de São Paulo (USP), em seu livro Amor do público — jardins no Brasil. “Era uma espécie de footing onde as pessoas da elite se encontravam, viam-se, paqueravam. Não era um espaço de lazer, como hoje, mas de relacionamento social”, explica o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, que lecionou durante a década de 1980 na Faculdade de Belas Artes, que então funcionava na vizinha Pinacoteca.
Com a chegada da primeira estação da Estrada de Ferro Inglesa, em 1867 — convertida em Estação da Luz em 1901 —, o parque passa a receber visitantes de todos os cantos e torna-se palco de grandes eventos. Foi lá a primeira exibição da luz elétrica, em 1883. “O Jardim da Luz foi o grande centro de lazer de São Paulo, era o nosso cartão postal, tão ou mais famoso do que o Parque do Ibirapuera é hoje”, compara Ricardo Ohtake, arquiteto, artista gráfico, presidente do Instituto Tomie Ohtake e autor do livro Jardim da Luz: um museu a céu aberto.
No fim dos anos 1920, a cidade ganha o Parque da Água Branca e grande parte das atividades são deslocadas para lá. Até a década de 1990, o jardim, que praticamente não havia recebido reformas, deteriora-se. Foi somente em 1999, após a chegada de Ricardo Ohtake à Secretaria do Verde e Meio Ambiente, que o antigo ponto de bonde, o coreto, a Casa da Administração e todo o complexo de águas são restaurados.
Dois séculos depois, o mais antigo parque público do município, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) em 1981, parece ainda manter certa nostalgia de outrora, sendo uma “rara herança colonial presente ainda hoje na cidade”, nas palavras do historiador Carlos Ungaretti Dias, coautor do livro Jardim da Luz e coordenador do processo de restauração do espaço na gestão de Ohtake.
Em suas alamedas geométricas e sombreadas por falsas-figueiras, pés de jaca e palmeiras-imperiais, e às margens do famoso lago em forma de Cruz de Malta, é possível encontrar homens trajando chapéus, grupos tocando viola e idosos repousando nos bancos de madeira ao som das mais das 80 espécies de pássaros catalogadas na área. Como explica Bonduki, o Jardim da Luz é parque histórico, contemplativo, com árvores centenárias, mas também um importante polo de cultura. Repleto de esculturas, é uma extensão da Pinacoteca e parte de um grande complexo cultural que inclui ainda o Museu da Língua Portuguesa, a Sala São Paulo, o Museu de Arte Sacra, o Memorial da Resistência (antigo prédio do Dops), a Casa do Povo, o Convento da Luz e a Oficina Cultural Oswald de Andrade.
Em uma área com mais de 76 mil metros quadrados e em meio à natureza cercada pela metrópoles, quem visita o parque pode apreciar cerca de 40 esculturas de artistas como Lasar Segall, Victor Brecheret e Maria Martins. A chegada do terceiro prédio da Pinacoteca (depois da Pina Luz e da Pina Estação), a Pina Contemporânea, em 2023, totalmente integrada e de portas abertas para o espaço, tem contribuído para um notável aumento do número de visitantes do Jardim da Luz — que conta, hoje, com uma média diária de 6 a 7 mil pessoas por dia. “Nosso público está descobrindo o parque, que, além da coleção de obras de arte, é maravilhoso com todo o seu complexo de águas“, enaltece Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca desde 2017. Ao contrário do prédio da Pina Luz, “inspirado nos moldes de um museu europeu, com uma grande escadaria na frente e fechado, como um bunker”, a Pina Contemporânea foi arquitetada para representar o oposto: “Passeando pelo parque, de repente nos deparamos com uma escultura do Tunga sem sequer perceber que estamos em um museu”, compara Jochen.
Pela manhã, cerca de 70% dos visitantes do parque são da terceira idade, com destaque para a comunidade coreana, que joga badminton, além de policiais militares em rotina de treinos. No almoço, trabalhadores do comércio do entorno descansam, enquanto crianças vão e vêm das escolas vizinhas. Ao longo de todo o dia, as profissionais do sexo esperam por clientes, gateiras voluntárias alimentam e cuidam dos cerca de 70 gatos que vivem por lá e moradores em situação de rua utilizam a área. Aos fins de semana, os frequentadores ganham a companhia da comunidade boliviana, que se reúne para dançar aos domingos, e dos apreciadores das artes. “Gosto dessa mistura. Áreas segregadas, com um uso só, muito comerciais, ou só elites, ou só populares, são áreas empobrecidas. O Jardim da Luz tem grande importância não só do ponto de vista arquitetônico, paisagístico ou cultural, mas também pela diversidade de pessoas que recebe. É uma área extremamente vibrante”, acredita Bonduki.
A advogada especialista em sustentabilidade Paulina Cho, nascida e criada no Bom Retiro e filha de pais coreanos, frequenta o parque desde a infância. Hoje, moradora de Pinheiros, ela costuma usar o parque para ir da estação Luz do Metrô até sua livraria, Aigô, com foco em literatura diaspórica e inaugurada em 2023 numa rua nos fundos do local. Ela acredita que o parque — assim como o bairro — tem um enorme potencial. “As pessoas ligam a Luz e o Bom Retiro a notícias negativas, mas tem muita coisa legal acontecendo, como festivais de música, exibições de filmes e restaurantes gregos, bolivianos e coreanos, além de todos os inúmeros centros culturais e museus e da excelente infraestrutura de transportes e das escolas da região”, pontua Paulina, cujo negócio conduz ao lado de duas sócias, também criadas no bairro.
Ao se pesquisar o espaço no Google, a primeira sugestão é: “Parque da Luz é perigoso?”. E não é apenas pela taxa de crimes nos arredores, mas também pelo estigma que pesa sobre os frequentadores, como pessoas em situação de rua e prostitutas. Há também a proximidade com áreas do “fluxo” das cracolândias. Segundo Bonduki, grande parte do público dos espaços de arte do entorno ainda evita circular pelo parque e pela região. “Eles vão de carro ou de Uber, entram e saem sem ter nenhum contato com o entorno. Não se sentem à vontade com essa mistura — e isso revela muito do processo de segregação que temos na cidade”, critica.
Maria sempre quis entrar na Pinacoteca, mas foi somente após participar de oficinas do projeto Extramuros — criado para torná-la mais acessível a grupos vulnerabilizados — que isso aconteceu. Trabalhadora sexual há 40 anos, dos quais 23 atuou só no parque, pisou pela primeira vez no museu há dois anos e meio. “Era um sonho, mas pensava que era muito caro, que me olhariam feio”, revela. O movimento das mulheres em prostituição, no parque, é tanto que há uma sala só para elas dentro da Casa do Administrador. Amparadas pela ONG Mulheres da Luz, recebem atendimentos médico e psicológico, além de aulas de alfabetização e oficinas diversas.
Antônio de Toro, gestor do Jardim da Luz desde 2022, conta com orgulho que o parque tem conseguido cada vez mais se distanciar da imagem de um local perigoso e abandonado para se firmar como um museu a céu aberto (e refúgio verde) em pleno centro de São Paulo. De acordo com ele, a transformação se deu graças a um aumento dos funcionários efetivos (de quatro para oito) e de vigilantes (de seis para 15), à melhoria da infraestrutura para os prestadores de serviços e a um policiamento mais ostensivo, com rondas constantes e a presença da Guarda Civil Metropolita (CGM) dentro do parque, o que reduziu o número de furtos em cerca de 90%.
De acordo com o regulamento do Jardim da Luz, de 2024, “por sua característica de preservação do patrimônio histórico, é um parque principalmente de contemplação e bem de uso comum do povo”. Não é por acaso a proibição para andar de skate, patins ou bicicleta. Além disso, placas relembram que não é permitido pisar na grama. “O Jardim da Luz é o nosso primeiro parque e, muitas vezes, ainda parece parado no tempo”, critica Gabriel Neistein, arquiteto urbanista e um dos autores do projeto Bom Retiro é o Mundo, que estuda soluções de melhorias para o bairro.
Para ele, o uso do espaço carrega aspectos de costume e civilidade do século 19. “É um parque que não abre à noite, não tem ciclovia e não pode pisar na grama, ou seja, não pode fazer um piquenique com amigos. A cidade está em movimento, e o local precisaria servir aos usos das pessoas”, pontua Neistein, integrante de uma família judaica que viveu no Bom Retiro por mais de cem anos. Nascido na Vila Mariana, recentemente se mudou para o bairro — e seu escritório de arquitetura dá de frente para o jardim.
Para a comemoração dos 200 anos do parque, Toro antecipa que está prevista a reabertura do aquário subterrâneo — o mais antigo da cidade e descoberto nos anos 2000, durante a escavação do terreno para o transplante de espécies de árvores —, a volta das carpas ao espelho d’água e a reinauguração da cascata da gruta. Segundo nota da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, também constam nos planos a contratação de um projeto para o restauro e as requalificação de todo o parque, incluindo a recuperação de edificações, equipamentos, infraestruturas, caminhos e acessos.
Além dos 200 anos do Jardim da Luz neste ano, a Pinacoteca também planeja uma série de comemorações — e não só pelo bicentenário do parque, mas também pelos 120 anos do museu. Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca, antecipa que algumas esculturas do Jardim, de domínio do museu, serão substituídas. “Temos uma coleção predominantemente masculina, paulistana e absolutamente branca. Vai ser interessante pensar em como diversificar a coleção, com novos artistas que ampliem a linguagem e as formas de representação.”
Uma metrópole como São Paulo não pode deixar de lado as áreas de lazer. “A cidade deve ser um lugar para o bem público, com áreas de encontro e convivência, e não apenas formada por lugares de produção. Esse é o sentido fundamental da metrópole. E é nos parques e praças que as pessoas se encontram”, finaliza o arquiteto Segawa.