Cultura da desigualdade

24 de novembro de 2025

“A desigualdade no Brasil é cultural e foi construída a partir de um determinado arranjo histórico que nos colocou aqui. Só que qual é a graça? Tudo o que a gente inventa, a gente pode desinventar.” É assim que o antropólogo Michel Alcoforado vê os abismos sociais tão marcantes da sociedade brasileira. Nesta entrevista, o fundador da consultoria Consumoteca e autor do recém-lançado Coisa de rico: a vida dos endinheirados brasileiros (Todavia, 2025), avalia o peso da cultura na construção dos indivíduos e da sociedade, explicando como o conceito rege todas as interações, das relações interpessoais à construção e à perenidade dos negócios. 

Confira abaixo os principais trechos da entrevista. Você também pode assistir a íntegra, em vídeo, no CANAL UM BRASILClique aqui.

O que é a cultura? 

É uma dessas palavrinhas que, de tanto a gente repetir, vão ficando gastas. Para um antropólogo, cultura nada mais é do que a lente que a gente usa para enxergar o mundo. No nascimento, um bebê, de qualquer lugar, enxerga o mundo do mesmo modo. Mas quando a mãe, o pai, a escola, a igreja, a televisão dizem o que é certo ou errado, como se comportar, a gente introjeta esse programa que nos permite ser o que a gente é. E, mais do que isso, nos permite ser sem precisar pensar muito antes de agir. Toda a escolha, do ponto de vista dos antropólogos, é criada pelo viés cultural. 

Como a cultura atua nas decisões da economia e dos negócios?

Qualquer modelo de negócio precisa atender à vontade ou à necessidade de alguém. E as vontades e necessidades dos consumidores ou das empresas são guiadas por esse caldeirão que é a cultura. Marshall Sahlins, antropólogo norte-americano, faz uma contraposição entre a razão prática e a razão cultural. Ele diz que, para os economistas, quando alguém chega a uma loja, faz o cálculo de custo e benefício que determina se o valor cobrado é apropriado. Mas a gente compra um bocado de coisa que, logicamente, no sentido prático, não faz sentido. E topa pagar caro por isso. Por exemplo, uma bolsa, em termos práticos, serve para quê? Carregar as coisas. Então, por que não saímos de casa com uma bolsa do supermercado, dado que ela tem uma função prática igual a de uma bolsa de luxo? Porque tem um simbólico, dado pela cultura, que faz com que uma bolsa, numa loja de luxo, faça muito mais por você do que só carregar objetos. Essa coisa que é fundamental na vida humana, que a gente não vê e não racionaliza, é a cultura. E não dá para fazer negócio sem isso. [É como] a frase típica de Peter Drucker [escritor e professor austríaco considerado o pai da administração moderna]: “Toda vez que a gente não leva em consideração a cultura, a cultura come a estratégia no café da manhã”. Então, não dá para inventar um produto vencedor sem levar em consideração a cultura por uma questão simples: toda vez que a gente compra feliz um produto, não é porque precisava dele. A gente fica muito feliz quando compra algo que nem sabia que precisava.  

Qual é a sua percepção da adesão ou da adoção da cultura como um valor para a tomada de decisão nos negócios?

A cultura, aqui, pode ser levada em consideração por dois pontos de vista. Primeiro, a bagagem cultural que esse empresário, esse grande CEO, precisa ter para tocar negócios eficientes. Por uma questão simples. Num mundo com 8 bilhões de pessoas e uma ameaça cada vez maior sobre os empregos, a única coisa a oferecer de diferente é autenticidade, que nada mais é que a mistura de “lé com cré” da experiência de vida, possibilitando novas respostas para o mundo que vão dizer, ou não, que você é único e tem algo a oferecer. Mas tem o segundo aspecto olhando para o arranjo cultural brasileiro e como inventar empresas que façam sentido para os nossos consumidores. Há uma enorme quantidade de fórmulas importadas dos Estados Unidos e da Europa que, quando chegam aqui, não funcionam. Os executivos estão se dando conta disso. Eles até não sabem direito o que é antropologia, mas sabem profundamente, sobretudo num país desigual como o Brasil, que o desafio é que quem toca grandes empresas no Brasil não mora no Brasil. O que eu quero dizer com isso? Essas pessoas têm acesso a privilégios que as afastam de boa parte da população: 87% vivem com menos de R$ 5 mil. Esse executivo tem um desafio que é criar canais ou caminhos para ter alguém que vai trazer esse ponto de vista do consumidor para a tomada de decisão. E os antropólogos fazem sentido nisso. 

Temos, hoje, consumidores muito mais informados, mas quanto a informação tem formado (ou deformado) o consumidor brasileiro? 

O intenso processo de digitalização da vida e do consumo resultou num consumidor extremamente mais pragmático. Por exemplo, o grau de fidelização cai drasticamente entre os baby boomers, nascidos no pós-guerra, se comparado com o da geração Z, nascida entre 1995 e 2010. Em alguns lugares, cai quatro vezes. No cenário brasileiro, 68% dos boomers dizem tranquilamente: “Deste sabão em pó eu não abro mão, porque minha mãe disse que é bom”. Na geração Z, só 20% têm alguma marca de fidelidade. Eles impõem um desafio enorme para a gestão de qualquer marca, porque aquele consumidor capturado não é o que estará sempre com a marca. A fidelidade é baixíssima porque dois elementos foram fundamentais nesse jogo. O primeiro são os ciclos de influência no processo de compra: pai e mãe tinham um papel muito importante na consolidação de alguns hábitos, sobretudo na gestão da casa, pois havia uma solidariedade intergeracional maior. Eu pegava o telefone e ligava para minha mãe para saber qual azeite eu compro. A farinha, o sabão… Hoje, não. O seu filho, em vez de ligar para você, acessa o TikTok e pergunta aos jovens parecidos com ele o que estão falando sobre aquilo. Isso introduziu uma dimensão diferente dentro das atividades de consumo, porque não são mais só os grandes speakers, os grandes embaixadores de marca e os veículos de comunicação que chancelam que uma marca é boa. O que chancela uma marca, agora, é o que eu chamo de valor de conversa. É o quanto no entorno do consumidor as pessoas estão querendo falar e consumir conteúdos em torno de um produto. Então, a informação em demasia, ou esse valor de conversa que o produto tem, derrubou a fidelização. Não tem mais alguém que chega e diz: “Olha, isso presta”. É preciso muita gente dizendo que isso presta para se ganhar a preferência do consumidor. 

Quanto essa mudança de referência atrapalha a perenidade dos negócios? 

A única solução para a perenidade de uma marca é ser plástica, mantendo os pilares que fazem com que o consumidor a reconheça, mas sem deixar de lado a adaptação. Coca-Cola é um exemplo clássico. A Coca-Cola que minha avó tomou não é a mesma que eu tomo, apesar de a fórmula ser a mesma. Uma plasticidade que gere pontos de contato com esses novos consumidores é o único caminho para fazer com que negócios de muito tempo continuem sendo de muito tempo. E o grande problema, agora, é trabalhar na dimensão da entrega de autenticidade para o consumidor. Não precisa todo mundo ir para o TikTok fazer dancinha. Não precisa botar o CEO respondendo a perguntas de cliente em todos os setores. Não há fórmula pronta, cada um precisa achar o jeito certo para a sua marca se conectar com o mundo.

Como é a batalha pelo ensino dessa antropologia, dessa compreensão do mundo?

O que tem me motivado é botar antropologia na boca do povo. Que a gente consiga, em algum momento, entender como a cultura impacta as nossas escolhas e determina também os caminhos da história e deste país. Ninguém é como é porque quer ser. Há razões culturais que determinam comportamentos, que fazem com que as pessoas façam o que elas fazem. E por que acho que a antropologia é a ciência do século 21? Porque o mundo está cada vez mais diverso, ou estamos cada vez mais nos dando conta da diversidade do mundo. E a única possibilidade de conviver é entendendo que cada um é de um jeito e que há outras possibilidades de ser. Se tivéssemos uma antropologia forte, o Brasil teria menos bolhas, mais capacidade de diálogo, menos grupos de WhatsApp com as famílias brigando por posicionamento político e entendendo que, no dia da eleição, cada um tem o próprio voto. É a cultura quem determina isso. 

A desigualdade no Brasil é cultural?

A desigualdade no Brasil é cultural e foi construída a partir de um determinado arranjo histórico que nos colocou aqui. Só que qual é a graça? Tudo o que a gente inventa, a gente pode desinventar. A elite brasileira é sensível à desigualdade. A elite brasileira se comove. Agora, o problema é que a elite brasileira, em geral, acha que esse é um problema mais do Estado do que da sociedade. Isso faz com que, mesmo diante do tamanho do problema, a taxa de engajamento na solução ainda seja baixa. Meu trabalho tem um papel fundamental de mostrar que nós, ricos ou não, nas dinâmicas cotidianas, reforçamos padrões que vão determinar que essa sociedade continue com cada um no seu lugar, com pouca mobilidade e pouca chance para quem não nasce com privilégios. 

Qual é a transformação que você quer estar vivo para acompanhar com o debate que promove?

Quero viver numa sociedade em que a diversidade — ou traços de raça, gênero e classe — não seja impeditivo para as pessoas serem aquilo que elas querem ser. Eu acho possível. Vamos olhar para este país 30 anos atrás. Tenho uma visão otimista, veja tudo o que já foi feito. Minha vida é infinitamente melhor que a da minha avó. E a minha vida será infinitamente melhor que a da minha mãe. Então, olhando para o passado brasileiro, a gente só melhora. Na educação, é lento, é ruim, mas melhoramos, universalizamos. Na economia, estabilizamos a moeda. A inclusão de pessoas negras e pobres na universidade, a gente conseguiu. E vai mudar mais, vai mudar incluindo mais. O caminho é esse, incluindo, inclusive, no debate. E esta, talvez, seja a principal coisa para começar a fazer: sentar com quem pensa diferente é diferente, entendendo como, dando um pouquinho daqui e dando um pouquinho daí, a gente inventa um negócio novo.

ESTA ENTREVISTA FAZ PARTE DA EDIÇÃO #489 (NOV/DEZ) DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA, DISPONÍVEL AQUI.

Entrevista Thaís Herédia | Edição de texto Dimalice Nunes Canal Um Brasil
Entrevista Thaís Herédia | Edição de texto Dimalice Nunes Canal Um Brasil
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