Ponte África–Brasil

17 de novembro de 2025

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Era noite de sexta-feira, 25 de julho, quando 13 músicos e seis dançarinos africanos se apresentaram juntos pela primeira vez. Instrumentos de percussão, roupas cheias de identidade e uma harmonia de ritmos coloridos e vibrantes marcaram a estreia do African Live Experience, no Sesc Pompeia, em São Paulo.

O grupo é recente, com artistas de Moçambique, Nigéria, Senegal, Angola, Benin e África do Sul que estão vivendo no Brasil. “A gente sabe do trabalho um do outro e já conversava sobre os nossos desafios enquanto artistas africanos aqui, como imigrantes. Entendi que, mais do que seguir com projetos individuais, seria interessante criar uma força única para acessar lugares que, até então, artistas africanos residentes no Brasil não acessam”, conta o cantor e percussionista moçambicano Otis Selimane, que lidera o grupo. A iniciativa, segundo ele, é uma forma de enfrentar “uma força muito grande que tende a nos colocar na margem”, já que é comum que artistas africanos abram mão de suas carreiras para, por questão de sobrevivência, trabalhar em outras áreas.

Assim como Selimane e sua equipe, o artista plástico angolano Paulo Chavonga é outro exemplo de que o propósito da imigração africana nem sempre está relacionada a guerras e outros tipos de sofrimento. No Brasil desde 2017, ele chegou para investir na formação em artes plásticas. O desenho está presente na sua vida desde os 8 anos — e em 2015, aos 18, fez a primeira exposição individual com a ajuda de professores do Núcleo de Jovens Pintores, em Luanda. “Depois, tive a oportunidade de participar da 7ª Bienal de Jovens Criadores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em Moçambique.

É um evento que reúne diplomatas e ministros de países que falam língua portuguesa no mundo inteiro”, conta o artista, sobre o evento que lhe deu destaque internacional. Em 2016, a segunda exposição individual lhe rendeu “uma boa grana” e chegou a hora de investir na carreira: a formação em artes visuais. “Fui pesquisando sobre os países ideais para se fazer isso, e apareceram Estados Unidos, Itália e Brasil — na universidade Belas Artes. Como já conhecia algumas pessoas aqui e, claro, também por causa da língua, acabei optando pelo Brasil”, relembra.

Fluxo transatlântico

Chavonga, Selimane, os músicos e dançarinos da banda e outros tantos africanos que vivem no Brasil fazem parte de um movimento de migração crescente. De 2010 a 2024, o País registrou a entrada de 1,7 milhão de imigrantes — 61,9 mil deles africanos —, segundo Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra). Eles representam apenas 3,5% do total de pessoas que entraram em território nacional  no período, em maioria formada por venezuelanos e outros sul-americanos.

No entanto, apesar de pequeno, o número de africanos tem aumentado. Foram mais de 8 mil registros de entrada somente de janeiro a julho deste ano. Para fins de comparação, em todo o ano de 2024, o Sismigra contabilizou pouco mais de 4 mil registros de africanos. São pessoas de mais de 50 países, com culturas e idiomas diversos. Além disso, chegam pelos mais variados motivos, como trabalho, estudo qualificados e, sim, também em busca de refúgio relacionado a guerras.

Historicamente, a maioria dos africanos que chegam ao Brasil vem de países de língua portuguesa. No primeiro semestre de 2025, por exemplo, 46% dos registros foram de pessoas nascidas em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique ou São Tomé e Príncipe. Imigrantes de países não lusófonos — como Senegal, Nigéria, República Democrática do Congo e Gâmbia — sofrem com barreiras mais duras para acessar emprego e serviços públicos básicos, explica Silvana Queiroz, demógrafa e professora-adjunta na Universidade Regional do Cariri (Urca), no Ceará. “Muitos acabam inseridos em nichos econômicos precarizados, como o comércio informal, além de estarem mais vulneráveis à discriminação e ao racismo, fatores que dificultam a construção de redes de pertencimento e integração”, afirma. 

No primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no início dos anos 2000, o Brasil aproximou-se mais da África, especialmente dos países lusófonos. O demógrafo Luís Felipe Aires Magalhães, pesquisador no Núcleo de Estudos de População Elza Berquó da Universidade de Campinas (Nepo/Unicamp), explica que essa articulação aumentou as participações diplomática, técnico-científica, empresarial (sobretudo por empreiteiras) e militar (acordos de cooperação) do Brasil em países como Angola e Moçambique. “Esses processos correspondem à estratégia nacional de angariar maior poder na geopolítica mundial, particularmente no Sul Global, para a obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU”, analisa o pesquisador. Além da disputa institucional, o País se coloca como um destino possível — “mas certamente não o mais desejado” — nas opções de rotas migratórias dos países africanos lusófonos. 

Idioma como vínculo

Magalhães reforça que é justamente a língua portuguesa que permite a construção de vínculos históricos entre o Brasil e esses países. A proximidade brasileira com nações que falam português a partir de iniciativas de governo não é recente. “É a proximidade linguística que explica, por exemplo, a maior adesão dos lusófonos da África a iniciativas do governo brasileiro voltadas para a atração de estudantes estrangeiros”, reforça, lembrando do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), de 1965, e o Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação (PEC-PG), de 1981. O demógrafo acrescenta que, na década de 1990, houve forte chegada de angolanos para estudar no País, sobretudo para o Rio de Janeiro. Hoje, a cidade concentra a segunda maior população de angolanos em território nacional, atrás apenas de São Paulo. 

A socióloga e jornalista angolana Silvia Mungongo está entre esses estudantes que vivem na capital paulista. Doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal do ABC (UFABC), ela entende que o Brasil é um destino habitual aos angolanos porque, desde a infância, os jovens consomem conteúdo brasileiro pela televisão. “Angola não tem tanta produção audiovisual quanto o Brasil. Minha mãe conta que, ainda nos anos 1980, já assistia a conteúdo brasileiro”, relata.

Ela menciona as novelas da Globo, além do SBT, da Record e da Band, ou seja, todas as grandes emissoras transmitem para o país africano. “E se não é por meio da grande mídia, é pelas redes sociais, porque os angolanos também seguem influenciadores brasileiros”, revela Silvia. A socióloga também aponta causas políticas. “O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência da Angola [em 1975], e o presidente Lula sempre fez questão de fortalecer as relações com as nações africanas, sobretudo as de língua portuguesa. É uma relação próxima não só pelo passado colonial, mas por tudo o que se desenvolveu mais tarde”, analisa.

Experiência Unilab

Como se nota, a educação é uma antiga força de atração de imigrantes africanos lusófonos, o que se acentuou com a criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em 2011, concebida como um projeto de reparação histórica com os povos negros e indígenas. Fruto de uma demanda do movimento negro, a universidade foi estabelecida em Redenção, no Ceará, a primeira cidade brasileira a abolir a escravidão, em 1883, cinco anos antes da Lei Áurea. Mas a instituição dispõe de uma estrutura multicampi, com unidades em outros municípios cearenses (Redenção, Acarape e Baturité) e na Bahia (São Francisco do Conde).

Segundo a vice-reitora da instituição, Elaine Gonçalves, a meta é que o corpo discente seja composto por 40% de africanos e 60% de brasileiros. Atualmente, os estudantes africanos representam cerca de 35% no campus Malês, na Bahia, e 25% nos campi do Ceará. A Unilab oferece 600 vagas para estudantes estrangeiros, com uma taxa de ocupação média de 80%. O processo seletivo é realizado presencialmente nos países africanos da CPLP, porém, segundo a vice-reitora, a universidade está no processo de migrar a seleção para um formato virtual a fim de reduzir custos e ampliar o alcance. 

Um dos egressos, o professor universitário Calido Mango, de Guiné-Bissau, conta que soube da Unilab quando, em 2013, se inscreveu em um curso de literatura brasileira no Centro Cultural Brasileiro, hoje Instituto Guimarães Rosa (IGR), órgão governamental brasileiro voltado para as diplomacias cultural e educacional. “Conheci uma moça que tinha passado na Unilab e estava no percurso de conseguir o visto para obtenção de bolsa. Fui à embaixada do Brasil e soube que podia me inscrever no vestibular”, relembra. Ele se preparou para a prova no começo de 2014 e, em maio do mesmo ano, já estava no Brasil. 

Acolhimento e precariedade

A chegada de estudantes estrangeiros é marcada por um forte acolhimento por parte dos próprios africanos já estabelecidos. Alguns deles recebem uma “bolsa-acolhimento” de R$ 150 para receber novos colegas. Isso porque, mesmo depois de 15 anos, a Unilab ainda não oferece moradia estudantil. “No geral, eles se juntam em grupos de seis a oito pessoas para alugar casas precárias e superlotadas, projetadas para apenas duas pessoas”, diz a vice-reitora, Elaine.

Há, ainda, o choque de realidade: muitos chegam com uma imagem de Brasil construída pelas novelas ambientadas em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. A realidade encontrada em cidades pequenas e com infraestrutura precária, como Redenção e São Francisco do Conde, frequentemente gera frustração. Além disso, a bolsa de R$ 500 é insuficiente, e as cidades oferecem poucas oportunidades de emprego.  Com isso, os estudantes são forçados a aceitarem trabalhos precários. A situação financeira é tão crítica que o funcionamento do Restaurante Universitário (RU) é vital para evitar a insegurança alimentar dos alunos.

Apesar das adversidades, a Unilab apresenta uma alta taxa de formandos, principalmente entre os estudantes que vêm de fora. “Boa parte fica para mestrado e doutorado. Temos estudantes que chegam aqui e, depois, vão para outros Estados, onde a empregabilidade é maior”, conta Elaine. A universidade também tem se mostrado um sucesso na missão de formar quadros qualificados para os países da CPLP. Muitos egressos assumem cargos de alta responsabilidade, como diretores em ministérios, professores universitários e diplomatas em Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde.

Um exemplo é Mango, que hoje leciona na Universidade Amilcar Cabral, em Bissau, capital do seu país de origem. Entre 2014 e 2019, ele fez o bacharelado em Humanidades e a licenciatura em Ciências Sociais na Unilab. “Não é necessário traduzir diploma brasileiro”, aponta. Outros formandos da Unilab permanecem no Brasil e buscam programas de mestrado e doutorado em universidades no Sul e no Sudeste, como a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a UFABC.

Ficar foi a escolha do cabo-verdeano Emanuel Semedo. Bacharel em Relações Internacionais pela Unilab, ele emendou com o mestrado na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e, atualmente, cursa o doutorado em Ciência Política na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Acho que, nesse quesito, minha expectativa foi atingida”, comemora. Calido, que voltou à Guiné-Bissau, retornou posteriormente ao Brasil para ampliar a formação acadêmica. “Fiz mestrado e especialização em 2022”, revela. Ele conciliou o mestrado em Ciência Política na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, com uma especialização a distância em Direitos Humanos e Movimentos Sociais na Universidade Estadual do Piauí (Uepi).

Cultura compartilhada, mas nem tanto

É comum ouvir de nascidos em países lusófonos sobre o quanto a cultura brasileira é presente nas suas formações, especialmente a música e a televisão. “A gente se identifica muito com o Brasil em todas as esferas culturais, vemos o carnaval pela televisão. Somos quase culturalmente colonizados pelo Brasil e, por essa razão, nós nos identificamos”, avalia o artista plástico Chavonga. No entanto, Silvana, da Urca, aponta diferenças culturais significativas que podem gerar estranhamento. “Nas questões de gênero, por exemplo, muitos imigrantes relatam choque entre os papéis tradicionais de homens e mulheres em seus países de origem e o debate mais intenso sobre igualdade presente no Brasil.”

Na Unilab, Elaine avalia que os estudantes africanos são politicamente mais atuantes, organizando-se em associações e fóruns, um modelo mais coletivo e menos burocrático que o tradicional Diretório Central dos Estudantes, o DCE, brasileiro. “Essa diferença dificulta a integração e a participação dos alunos brasileiros na política universitária.” As organizações comunitária e étnica são outros pontos de contraste. Enquanto em vários países africanos a identificação é fortemente marcada por etnia e linhagem, no Brasil, por causa do modo de socialização escravagista dos negros, predomina uma vivência mais miscigenada e menos segmentada. 

A despeito dessa percepção clara dos africanos sobre as nossas semelhanças, de cá, os africanos ainda são vistos como um povo único, como se o continente fosse um só país do qual quase nada se sabe. “Para muitos brasileiros, a África é Wakanda, é O Rei Leão. É aquela fantasia, as selvas, as florestas. Não pensam muito que a África tem vida, uma juventude sagaz e tecnologia. Temos edifícios altos e rodovias. Enfim, também temos modernidade”, ressalta a socióloga Silvia. 

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #489 (NOV/DEZ) DA REVISTA PB. CLIQUE AQUI E CONFIRA A ÍNTEGRA.

Camila Rodrigues da Silva Débora Faria/Annima de Mattos
Camila Rodrigues da Silva Débora Faria/Annima de Mattos