Documento que costuma ser chamado de certidão de nascimento do Brasil, a carta escrita por Pero Vaz de Caminha (1450–1500), integrante da frota de Pedro Álvares Cabral (1467–1520) que desembarcou, em 22 de abril de 1500, na costa do território, hoje, brasileiro, enfatiza que os nativos eram “tão limpos […] que não podem ser mais”. Pesquisadores contemporâneos concordam: cinco séculos atrás, os padrões de higiene dos indígenas que viviam por aqui eram superiores aos do europeu médio. E pouca coisa mudou. Um estudo recente de uma empresa do ramo de higiene pessoal concluiu que o brasileiro toma, em média, 8,5 banhos por semana, contra apenas 6,5 entre os norte-americanos.
De acordo com levantamento publicado em 2021 pelo perfil The Global Index, no X (antigo Twitter), que compila estatísticas curiosas em forma de mapas, na maior parte dos países europeus o hábito do banho diário é parte da rotina de menos de 65% da população. Os italianos são os que mais se banham — pelo menos 95% deles declaram ir ao chuveiro pelo menos uma vez por dia. Entre os portugueses, o banho diário é prática de 85% a 94% das pessoas; entre os espanhóis, de 75% a 84%.
Essa diferença cultural é observada com frequência — muitas vezes de forma caricata, diga-se — por brasileiros que moram fora. E as raízes indígenas do costume não são lenda urbana, encontrando eco no universo acadêmico. “Em linhas gerais, aprendemos a tomar banho com os povos indígenas”, comenta o historiador e antropólogo Giovani José da Silva, professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap).
Em mestrado defendido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2019, a psicóloga Lívia Lessa ressaltou que a limpeza dos indígenas saltou aos olhos de Caminha, merecendo menção em sua carta inaugural, porque “contrastava o asseio dos indígenas e o dos portugueses”. Tal contraste não era fruto apenas dos mais de 40 dias de expedição marítima, em embarcações sem banheiros, pontuou. “Os banheiros não existiam nas cidades da Europa e os portugueses só lavavam o corpo inteiro duas vezes por ano. Acredita-se, assim, que a rotina do banho distanciava os dois povos, já que os nativos da nova terra se banhavam nos rios, em média, de 10 a 12 vezes por dia, enquanto os lusos evitavam o contato com a água”, apontou.
Herdamos o asseio dos indígenas, nativos do continente americano, mas Silva faz um reparo. É preciso cuidado ao usar o verbo “herdar” neste caso — afinal, a palavra indica algo deixado por quem já não está mais aqui. E os povos indígenas, embora muitos tenham sido dizimados, existem (e resistem) nos dias de hoje. Aprendemos, portanto. “Foi uma contribuição da cultura indígena”, opina o antropólogo.
Há uma farta documentação indicando que esse cuidado maior com o asseio não era exclusividade dos pré-colombianos. Civilizações da Antiguidade, como Mesopotâmia, Egito, Roma e Grécia, tinham o banho como algo mais nevrálgico do que a Europa de 500 anos atrás. Segundo Silva, o fator religioso está por trás dessa história. A moral católica, que dominou o continente europeu no período medieval, associava o corpo ao pecado — assim, cuidar, tocar, despir e limpar o corpo eram práticas muito próximas do que esse olhar da Igreja tendia a erotizar, sexualizar.
Então, veio o período das chamadas Grandes Navegações e do choque cultural ficou o espanto — e um aprendizado. “Os primeiros portugueses que aqui chegaram vieram sujos, fedorentos, aos trapos. E encontraram uma população cujo asseio era algo que sobressaía”, destaca Silva. “É por isso que se associa tanto esse hábito brasileiro de tomar banho todos os dias aos indígenas”, observa.
Há uma informação curiosa nesse processo de intercâmbio cultural, porque, na quase totalidade das interações, foi o ponto de vista do colonizador que acabou se perpetuando. O idioma português foi imposto aos indígenas. A religião católica, também. Por outro lado, a prática do banho diário foi assimilada. E, atualmente, faz parte do dia a dia de quase todo brasileiro, independentemente se é alguém de etnia indígena ou não.
Mas não foi coisa de uma hora para a outra. O antropólogo lembra de histórias pitorescas, como a bastante conhecida de que o Rei João VI de Portugal (1767–1826) — que transferiu a corte de Lisboa para o Rio de Janeiro — evitava tomar banhos, mesmo tendo sido aconselhado por seu médico a lavar-se.
Gradualmente, a falta de higiene passou a ser associada não só a maus odores — intensificados pelo clima mais quente do Brasil em comparação com as temperaturas geralmente amenas da Europa —, mas também à proliferação de doenças. “O frio europeu tornava os banhos mais inconvenientes”, compara Silva. “Além disso, o Brasil tem muitos recursos hídricos, o que tornava o hábito mais convidativo”, acrescenta.
De acordo com o antropólogo, o processo de colonização, se tem um lado mais forte que impõe, também permite uma mão dupla no intercâmbio de conhecimentos e práticas. Nesse sentido, a comida também é um exemplo: o português aprendeu com o indígena a comer mandioca, entre outros alimentos. “Há o que eu chamo de negociações. E o banho diário, para mim, é uma dessas formas de se negociar. O costume permaneceu. Foi uma sobrevivência negociada”, ressalta Silva, da Unifap.
Na visão do antropólogo, essa contribuição dos nativos para o país que se formaria foi uma influência “muito boa”, tanto pelo asseio como no que tange ao controle da disseminação de doenças. “E também com o conhecer o próprio corpo”, acrescenta. Não há como discordar. Afinal, como cantava o ratinho do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum — música composta por Hélio Ziskind —, “banho é bom, banho é bom, banho é muito bom”. Educativo. Verdadeiro. Brasileiro.