entrevista

Perigoso mundo novo

03 de junho de 2021
C

Carros sem motoristas, computadores que pensam e aprendem sozinhos, objetos cotidianos ligados entre si – ao mesmo tempo autônomos e controláveis a distância. O conceito de privacidade em extinção. Dados pessoais vazados. O ataque aos regimes democráticos. Para ajudar a nos situarmos neste inédito contexto, tão admirável quanto assustador, o Canal UM BRASIL, uma realização da FecomercioSP, conversa, em entrevista publicada com exclusividade pelo site da PB, com o especialista em tecnologia Ronaldo Lemos.

“No Brasil, o ápice do home office teve apenas 12,7% de pessoas. E as outras mais de 87% de pessoas não estavam em home office. A pandemia acelerou este processo de transformação, mas também evidenciou e trouxe um desafio que já existia: o problema da desigualdade, de uma forma muito mais radical.”

Ronaldo, durante este último ano, uma série de atividades profissionais passou a ser realizada de forma remota, inclusive esta entrevista. Você acredita que estas mudanças vieram para ficar? O mundo das relações interpessoais será mais remoto, mais distante, mais tecnologicamente mediado?

Veio para ficar, mas depende para quem. E eu acho que esta discussão do “para quem” fica de fora deste debate. Então, assim, para a parcela da população que está conectada; que já era, de alguma maneira, trabalhador cognitivo, que trabalha com a cabeça, tem lá ferramentas de conexão. Tem internet em casa, uma conexão boa que se paga ali, todo mês. Ou um celular, talvez até de última geração, que permita levar esta conectividade para onde for. Para este segmento da sociedade, este processo que a pandemia desencadeou não tem mais volta. Pelo contrário, vai ser cada vez mais aprofundado, e vamos viver cada vez mais sem ter a necessidade de presença física, de forma virtual. Agora, para o outro segmento da população, o majoritário, que não tem conectividade, não são trabalhadores cognitivos – então, trabalham com o próprio corpo ou precisam fazer deslocamentos pela cidade – e assim por diante, não vai acontecer isso.

O meu temor é que tenhamos uma divisão mesmo, até cultural, entre duas classes, duas novas classes, que passam a ser mais demarcadas e que têm modos de trabalho e de vida, valores, interações culturais e desejos muito diferentes. Então, só para lembrar, no Brasil, no ápice do home office, apenas 12,7% de pessoas estavam em home office. E as outras mais de 87% de pessoas não estavam, não houve trabalho remoto. Então, neste sentido, acho que a pandemia acelerou o processo de transformação, mas também evidenciou e trouxe um desafio que já existia: o problema da desigualdade, de uma forma muito mais radical. Porque aqui há um perigo de cisão mesmo, de um segmento da sociedade que decola e vira espaçonave, e outro que fica para trás aterrado, preso à Terra ali, sem as possibilidades que esse outro segmento, que se descolou até da presença física, vai ter. Isso me preocupa.

Este ponto que você levanta, relativo à desigualdade, em se tratando de um país historicamente desigual, uma desigualdade que vai além da renda, é uma desigualdade que afeta até a experiencia de vida mais profunda das pessoas. Você acredita que a desigualdade digital pode se somar a uma desigualdade histórica brasileira?

Sem dúvida. E desigualdade é um obstáculo para o desenvolvimento, as pessoas se esquecem disso. Acho que o Brasil almeja se desenvolver, e um país desigual tem muito mais dificuldade para se desenvolver. Esse problema da desigualdade tem um componente global. Por exemplo, uma tecnologia como Inteligência Artificial (IA). Muita gente tem muito medo de que acabe com os empregos, que vai automatizar coisas. E o ponto é que é verdade, mas onde os empregos vão acabar primeiro serão nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Então, a IA não vai eliminar primeiro os empregos nos Estados Unidos, na Europa… Vai eliminar primeiro os empregos aqui, na América Latina. E a enxergamos isso no processo de desindustrialização pelo qual o Brasil está passando: perda de capacidade produtiva, montadoras deixando o País, isso tudo é reflexo de uma atividade que tem a ver com o que está acontecendo não só no País, mas com um rearranjo global provocado pela tecnologia. Fico muito triste, porque o Brasil está abrindo mão não só da infraestrutura produtiva. No processo de desindustrialização, está abrindo mão também da infraestrutura informacional. Nós não temos, hoje, no Brasil, um parque robusto, que seja originário daqui, relacionado a computação em nuvem, IA e, até mesmo, a mídia. O próprio segmento de produção, de conteúdo, no Brasil, está sendo achatado cada vez mais.

Os efeitos disso são muito graves, pois fazem com que a possamos, num futuro, ser equiparados a uma colônia, no sentido de que o País tem uma população muito grande. Então, mandamos para fora dados que são a matéria-prima do mundo em que vivemos. Esses dados são processados e geram valor, serviços e produtos, e os compramos, processados com algoritmos por IA, que por usa vez facilita a nossa vida – e assim por diante. Esta posição não é uma preocupação só para o Brasil, considerando que o jogo da IA provavelmente vai ficar entre dois países, China e Estados Unidos. A pergunta que temos de fazer é: qual papel países em desenvolvimento, como o Brasil e vários outros, terão nesse cenário? Será que vai nos caber somente enviar essa matéria-prima, esses dados, que cada um de nós produzimos o dia inteiro, quando usamos o celular? Toda hora estamos produzindo dados, e esses dados são enviados massivamente para serviços mais sofisticados; em troca, acabamos comprando o resultado desses serviços. Não a tecnologia em si, mas o resultado que ela oferece, e, obviamente, pagando caro por isso. Este ponto para mim é central.

Poderia descrever, de uma maneira mais prática, o que estamos falando quando abordamos a substituição de humanos por artefatos tecnológicos no campo do trabalho?

Tem vários estudos, por exemplo, da Universidade de Oxford, que previu que 47% dos empregos nos Estados Unidos seriam automatizados nos próximos anos. Basicamente, desapareceriam. Uma tabela mostra a probabilidade de cada tipo de emprego. Então, alguns que não vão desaparecer, como a atividade de enfermagem, porque a máquina não vai substituir o contato, o cuidado humano, etc. A probabilidade de automação desse tipo de trabalho é muito pequena, é próxima a zero. Agora, outros trabalhos, como o de call center, que atende e orienta as pessoas, o grau de probabilidade de automação – ou seja, de a máquina fazer isso – é de mais de 90%. Com a tecnologia de processamento de voz natural (e isto sendo automatizado), teremos uma redução de um contingente grande de pessoas empregadas, como os atendentes de call center. No Brasil, inclusive, este é um setor que emprega muita gente, e a automação põe em risco estas posições. E não importa se se trata apenas de uma atividade física, como robôs das indústrias na linha de produção, mas o trabalho cognitivo também está sendo substituído por máquinas. Elas, hoje, interpretam como falamos, conseguem escrever textos e editar vídeos, criar narrativas, tudo baseado em IA. Então, esse tipo de automação pode, sim, fazer com que os empregos desapareçam.

Agora, como disse, os empregos acabarão antes aqui, nos países pobres. Nos ricos, grande parte deles já tem planos nacionais de respostas à IA, que incluem reformas educacionais e ensino de novas habilidades, para que as pessoas deixem de fazer uma determinada coisa, que não será mais necessária, e passe a fazer outra. Há incentivos econômicos, uma rede de bem-estar social para assegurar essas pessoas neste período de transição, enquanto ainda não aprendem habilidades novas. No Brasil, onde temos um déficit educacional gigantesco, onde não se está preparado, não existe um plano nacional de IA, o impacto será muito mais profundo – e com o qual será mais difícil de lidar.

Cada vez mais as pessoas trabalham para um algoritmo. A ideia de uma precarização do emprego que é possibilitado por essas tecnologias – e que, de certa maneira, nem se esconde – tenta convencer que as pessoas estão trabalhando não para alguém, mas para um algoritmo; não são trabalhadoras, mas empreendedoras. Este processo tecnologicamente mediado de precarização do emprego também é um fenômeno que veio para ficar?

É isso mesmo. Sempre acreditamos que o robô trabalharia para nós. Até a origem da palavra “robô” é isto: um objeto técnico que trabalha para nós, seres humanos. E o que está acontecendo, hoje, é ao contrário. Somos nós que estamos trabalhando para os robôs: os algoritmos. Muitas das atividades humanas são mediadas por esses algoritmos. Se você é um entregador de serviços de delivery, um motorista de serviços de transporte, no seu trabalho não há um patrão que diz: “Vá ali, pegue uma pessoa que está lá…”, ou, “Pegue isto aqui e entregue ali…”. São os algoritmos que dão oportunidades, adicionando aqueles jobs – e, obviamente, dependendo do lugar onde estiver, a sua avaliação, quantas estrelas tem no aplicativo, etc. –, que são distribuídos de forma automática. De fato, a figura do patrão sai de cena e você passa a trabalhar para uma entidade despersonalizada. Se não gostar do serviço oferecido, não há como negociar. É pegar ou largar, e não tem para quem reclamar ou coisas do tipo. Esta é uma mudança profunda no trabalho.

Esse problema do robô, quem trabalha para quem, acho que é o grande desafio, porque estas máquinas obviamente geram muita riqueza. Se todo mundo tivesse um robô, ótimo. Se a propriedade dos robôs fosse disseminada para todos nós, todo mundo fosse sócio do robô, do valor que aquele robô gera, ótimo, pois esse valor será distribuído de forma mais capilar na sociedade. Contudo, não é isso que acontece. A propriedade dos robôs passa a ser cada vez mais concentrada, os algoritmos estão acumulados em empresas especificas, em projetos específicos, e um contingente de milhões de pessoas produz valor dentro daquele sistema. Como projetaremos um futuro em que não sejamos nós que trabalhemos para o robô, mas o robô que trabalhe por nós? Os algoritmos que trabalhem por nós? Como usaremos esses algoritmos para potencializar o nosso trabalho, a nossa geração de valor, e não o contrário?

Quais são as suas impressões relativas ao 5G no Brasil? Como ele deve ser implementado?

Conectividade é fundamental. Se pudermos resumir o desafio do Brasil em uma única frase, seria a seguinte: “Precisamos aprender a transformar conhecimento em valores econômicos e sociais”. O País já é relativamente bom em transformar recursos da natureza em valor econômico. Fazemos isso no agronegócio, na mineração, mas, no mundo onde vivemos, isso não é suficiente. O desafio é conseguir transformar o conhecimento em produto, serviço e desenvolvimento. Essa é a nossa tarefa. Para olhar a conectividade (ou qualquer outra decisão de política pública), essa é a pergunta que temos de se fazer. Isso aumenta ou diminui a probabilidade de transformarmos mais conhecimento em valor, em serviços, em produtos. Se investirmos em conectividade, a probabilidade de darmos um salto será maior.

E no certame do 5G já estamos atrasados, porque infraestrutura boa de conectividade é a base para todos estes tipos de inovação que queremos buscar. Se não trouxermos logo o 5G, o que acontecerá: as aplicações de 5G serão desenvolvidas por alguém que já as tenha – não há como se desenvolver a aplicação de escala de 5G se não a tem ainda. Se demorar demais, ao chegar aqui, nos restará o papel de consumidores dessas aplicações, e não de produtores. O que gostaria de ver acontecendo no Brasil é que o tivéssemos imediatamente, para desenvolvermos aplicações e, quem sabe, até vendê-las. Já deveria ter acontecido o leilão um ou dois anos atrás. Minha torcida, agora, é que o edital lançado seja implementado o mais rápido possível, e tenhamos o 5G para ontem.

Privacidade é um dos temas que mais preocupa a população em termos gerais. O que pode acontecer com cada um de nós a partir do pressuposto de que os meus dados são meus, mas já estão, possivelmente, nas mãos de alguém. Há algo que possamos fazer? Quem é o responsável por isso ter acontecido?

O vazamento de dados é uma vergonha que denota que o Brasil não está com estrutura adequada de segurança, que a forma como estruturamos os bancos de dados no País não é correta. Isso gera vulnerabilidades para todos nós. Só pelo fato de sermos brasileiros e termos sofrido esse vazamento, estamos vulneráveis a golpes internos. Esses dados seriam usados contra o nosso interesse e até para que estrangeiros possam explorá-los contra nós.

O que precisamos fazer nesse sentido é levar a sério a cibersegurança e, finalmente, construir uma infraestrutura tecnológica que seja capaz de armazenar os dados sem pôr as informações em risco. Mais do que isso, precisamos reformar o sistema de identidade no Brasil. A forma como usamos dados é caótica. Existe título de eleitor, CPF, carteira de identidade, registro profissional, certificado de reservista, carteira de trabalho… Isso é uma loucura. Precisamos criar um modelo mais simples, mais seguro e digital para gerir as informações.

Nos últimos anos, houve uma série de assaltos aos sistemas democráticos por meio de mecanismos tecnológicos. O que são esses mecanismos e por que tão convincentes?

A questão é que, hoje, é possível montar estratégias e planos para manipular as pessoas, porque sabemos as preferências delas, a vulnerabilidade, os hábitos, os valores políticos até coisas íntimas também, como  sexualidade, interesses… Então, isso tudo se tornou moeda comum e abre caminho para táticas de manipulação. Nos últimos anos, temos visto campanhas organizadas permanentes do gênero. E essas campanhas, muitas vezes, usam coisas que são totalmente desonestas, como perfis falsos, dando impressão que existem milhões de pessoas falando sobre alguma coisa – quando, na verdade, trata-se apenas de um grupo tentando passar aquela informação. E passamos informações de acordo com determinados públicos sociais, o que eles acreditam, pelo que prezam. O mais perverso de tudo é que se injeta medo numa sociedade, insegurança, raiva, estes sentimentos muitos primitivos, e, na sequência, apresenta as soluções simplórias para esses sentimentos. Vimos isso acontecer na maior parte das democracias do mundo nos últimos anos.

Acho que precisamos reconstruir o espaço para o debate. Na internet, por um lado, há teses; por outro, antíteses, mas não se tem síntese nenhuma, ninguém chega à conclusão. Ninguém se convence de nada, pelo menos conscientemente. Inconscientemente, somos muito manipulados – podemos achar que não, mas somos levadas para um lado e para o outro. Meu desejo é que voltássemos ao debate racional, consciente, não a essas técnicas de manipulação subconscientes que temos visto.

Você não tem medo deste novo mundo, Ronaldo?

Óbvio que eu tenho medo. Poxa, o mundo onde cresci e vivi não existe mais. Isso é um problema, porque gera alienação, desenraizamento e uma série de outras coisas que a vamos continuar enfrentando cada vez mais. Entretanto, o ponto-chave aqui é que o virtual está começando a ser capaz de reproduzir praticamente tudo do real. Então, não acho que o ponto seja que o virtual esteja replicando o que tínhamos no universo físico; está substituindo um modelo de realidade por outro. Quando vemos o caso das criptomoedas, por exemplo, não é só que eles recriam a escassez do mundo real no virtual; mas, ao fazê-lo, criam uma coisa totalmente nova, que pode, inclusive, ter o papel de sugar ou desvalorizar o plano do real. Vivendo um processo de interação permanente entre o que chamamos de realidade com esta outra camada, que é digital e tem uma lógica interna própria.

A interação entre estes dois planos – que, obviamente, estão misturados hoje – é muito interessante, porque pode ter efeitos dramáticos, como mudar a dinâmica de democracias inteiras, de economias inteiras. Mudar completamente a forma como alocamos recursos escassos, não por necessidades reais ou físicas, mas virtuais, que muitas vezes são irracionais ou imprevisíveis, ou completamente injustificáveis. Acho que é isso que devemos de pensar, porque o virtual tem uma capacidade gigantesca de organização da ação humana. Tomamos cada vez mais decisões e agimos, inclusive trabalhamos, por orientação de algoritmos ou de questões virtuais, e isso vai valer para tudo. O meu medo é que o deslocamento entre essas duas coisas seja brutal, e que as necessidades do real sejam umas, e as do virtual, outras, completamente distintas. E por causa desta “sereia digital”, acabemos por ir para um lado inverso ao da sobrevivência da espécie. Isso me preocupa, mas o jogo já está jogado, e vamos ter de lidar com isso.

Assista a entrevista completa abaixo:

Renato Galeno Divulgação
Renato Galeno Divulgação
leia também
receba a nossa newsletter
seta