Durante os anos 1990 e 2000, parte expressiva da literatura em ciência política convergiu para uma visão de que o Brasil vivia uma espécie de hiperpresidencialismo. O Executivo federal, dotado de amplos poderes de iniciativa legislativa e controle orçamentário, era visto como o principal formulador de políticas públicas, enquanto o Legislativo operava, em grande medida, como revisor. Essa leitura foi central para as compreensões do presidencialismo de coalizão e da lógica de governabilidade baseada em barganhas institucionais e distribuição de recursos.
Com o tempo, porém, o Executivo perdeu parte dessas prerrogativas, resultado de transformações institucionais importantes. A Emenda Constitucional (EC) 32/2001 limitou a prorrogação indefinida das Medidas Provisórias (MPs). Além disso, a Questão de Ordem nº 411/2009 — depois referendada pelo Mandado de Segurança 27931/DF — suavizou o trancamento da pauta legislativa, restringindo o poder de obstrução do Executivo sobre o Congresso, como afirma Lucas Machado no artigo “Dilemas institucionais e cenários políticos: análise do discurso da alteração do sobrestamento da pauta na Câmara dos Deputados”. No plano orçamentário, as ampliações das emendas impositivas e das transferências especiais reduziram a centralidade do Executivo na definição de prioridades. Em suma, a arquitetura da tomada de decisão pública se tornou mais fragmentada e menos concentrada no Planalto.
Nesse novo arranjo, o Judiciário — especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF) — e os órgãos de controle passaram a ocupar um papel mais ativo na definição da agenda pública. De decisões envolvendo o meio ambiente até a saúde pública, cortes passaram a estipular prazos, estabelecer obrigações e interferir diretamente na forma como políticas são conduzidas. O exemplo da implementação do Plano Nacional de Vacinação contra a covid-19, decidido em 2020, é ilustrativo: não se tratou apenas de garantir direitos mas também de organizar a própria execução de uma política.
A presença crescente do Judiciário nesse papel não é um fenômeno isolado. O que se observa é uma resposta institucional ao esvaziamento da capacidade de coordenação do Executivo e, em muitos casos, à inação do Legislativo. A judicialização da política tornou-se um canal efetivo de vocalização de demandas sociais que não encontram ressonância suficiente nos processos legislativos. Como observou Paulo Peres, em artigo recente aqui, no site PB, vivemos uma reconfiguração do presidencialismo de coalizão, marcada por menor poder de iniciativa do Executivo e maior ativismo de instituições de veto. Já Humberto Dantas foi além e afirmou, categoricamente, que o STF é político e o que o Legislativo age de forma errática na tentativa de retomar protagonismo.
Essa dinâmica se estende também ao controle externo. Um exemplo é o caso da Resolução 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada pelo Executivo em 2023. Sem ter sido aprovada pelo Congresso Nacional, a norma vem sendo interpretada por tribunais de contas como de observância obrigatória por entes públicos. Dos 49 países que ratificaram o texto, só 10 ainda aguardam a entrada em vigor em seus territórios. O tema é objeto da dissertação de mestrado em andamento de Caroline Laurentino de Almeida Balbino no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-SP). Assim, determinações internacionais adquirem força normativa não por meio de deliberação legislativa, mas por interpretações de órgãos de controle — deslocando, novamente, o centro da produção normativa.
O diagnóstico, portanto, é menos sobre um colapso do presidencialismo de coalizão e mais sobre a sua transformação em um modelo de governança distribuída, no qual múltiplos atores (togados, técnicos e eleitos) disputam o poder de definir o rumo das políticas públicas. Mas essa descentralização também revela um paradoxo inquietante: por que o Legislativo, composto por representantes democraticamente eleitos e que detém legitimidade popular, tem mais dificuldade de ouvir e responder às demandas sociais do que o Poder Judiciário e os órgãos de controle?
Responder a essa pergunta é fundamental para entender os entraves atuais da democracia brasileira. Em vez de condenar o protagonismo de outros poderes, talvez seja hora de repensar a forma como o Legislativo se estrutura, comunica-se e se organiza para exercer o papel que lhe cabe: o de ser a arena por excelência da deliberação pública.
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