Parece enredo nonsense de escola de samba. No dia em que o frevo saiu do Recife para fazer carnaval no Rio de Janeiro, uma parada em Salvador viu nascer, depois de um acidente, o trio elétrico — que, naquela época, ainda era uma dupla.
Tanta confusão precisa de explicação. E foi assim: o Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas, agremiação pernambucana fundada em 1889, se apresentaria no Rio de Janeiro, então capital da República, no carnaval de 1950. E, no meio do caminho, uma parada em Salvador. Em 31 de janeiro, surgira a oportunidade de uma apresentação na capital baiana. Durante o espetáculo, a multidão vibrou com o estandarte majestoso e a fanfarra de 65 músicos. Mas um pequeno acidente feriu um deles, encerrando o show antes do esperado e frustrando o público reunido no centro da cidade.
Foi quando Dodô e Osmar entraram em cena. A dupla, formada por Adolfo Antônio do Nascimento (1920–1978) e Osmar Álvares Macedo (1923–1997), entendeu que a festa não podia parar e resolveu assumir as rédeas da apresentação. O problema? Sessenta e cinco músicos com metais podiam ser ouvidos por uma multidão, ao contrário de apenas duas pessoas.
Então, surgiu a ideia revolucionária. Eles adaptaram um Ford 1929, apelidado de “Fobica”, equipando-o com aparelhos de som. Como Dodô trabalhava como eletricista, foi fácil fazer com que a bateria do carro alimentasse os alto-falantes.
Com um instrumento precursor da guitarra elétrica — chamado por eles de pau elétrico e, depois, conhecido como guitarra baiana — e um violão, os dois arrebataram os foliões sob o nome de Dupla Elétrica. “A eletricidade possibilitou o aumento do ganho sonoro dos instrumentos. Aí, somente um conjunto com uma percussão, um violão elétrico, um cavaquinho ou coisa assim já conseguia fazer frente a uma banda de metal com 50 ou 60 integrantes”, explica o músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor na Universidade de São Paulo (USP) e consultor da cátedra Kaapora, da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No ano seguinte, a bordo de uma picape Chrysler Fargo, a então dupla ganhou um terceiro integrante, o amigo Temístocles Aragão. Agora em três, nascia o primeiro trio elétrico.
Em 1952, a ideia já fazia sucesso no carnaval soteropolitano. Tanto que uma marca de refrigerantes decidiu patrocinar a empreitada, cedendo um caminhão decorado ao grupo. Estava inaugurado o formato típico dos carnavais de rua. “Trio elétrico substantivou essa ideia do caminhão com música”, conta Ikeda. “Foi mesmo um marco dos pontos de vista musical e tecnológico, uma coisa que ficou e que tem a sua origem concomitantemente com as bandas de rock, embora com outro enfoque”, contextualiza o especialista. E nas ruas, o ziriguidum passou a elétrico de forma irreversível.
“A musicalidade do Trio Elétrico contribuiu para o desenvolvimento de uma escola que permitiu a muitos artistas da Bahia, como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Carlinhos Brown, tocarem para o mundo”, diz o verbete dedicado ao tema no Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.
Com dinheiro na jogada, é claro. O fato de o carnaval de Salvador ter patrocínio desde sua gênese está na raiz de uma exceção da festa de rua Brasil afora: lá, é preciso pagar para participar.
Abadá — o passe vestível que se compra para participar da folia — é uma palavra de origem iorubá que dá nome às batas de rituais religiosos. Hoje, um negócio que gira milhões Para 2025, os abadás mais baratos custam R$ 280 reais – e o camarote mais caro tem um pacote vip que sai R$ 4 mil. Esse luxo para poucos inclui espaço gourmet, massagens e área para maquiagem e personalização dos abadás, com presença em peso de marcas patrocinadoras.
Para os não uniformizados, resta a opção de ser pipoca, nome dado aos foliões que acompanham os cortejos dos trios do lado de fora da corda que delimita a área dos pagantes.
A capital baiana, que tem 2,5 milhões de habitantes, deve receber 850 mil turistas no carnaval e estima-se que a festa deste ano movimente cerca de R$ 1,8 bilhão. Para que nada vire bagunça, a cidade fica dividida em seis circuitos, onde blocos e trios passam durante os dias de folia.
Em 2004 o Guinness Book, o livro dos recordes, reconheceu o carnaval soteropolitano como o maior de rua do mundo. Os trios de Salvador viraram um produto também em outras praças: a maioria deles se apresenta em outras grandes cidades brasileiras no pré ou no pós-carnaval: se você não vai até a Bahia, a Bahia pode ir até você.
O trio elétrico virou um patrimônio importante da cultura nacional e já foi homenageado e eternizado por Caetano Veloso em 1969, quando o baiano cantou que “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, afinal “o sol é seu, o som é meu”.