Donos da rua?

21 de novembro de 2025

E

“Ei, doutor, pode deixar que eu dou uma olhada aqui para o senhor. Paga um cafezinho depois.”

Esta frase — e suas milhares de variações — faz parte do dia a dia do motorista que circula pelas grandes cidades brasileiras. Quem a diz é uma pessoa geralmente caracterizada como desempregada ou subempregada. Não raras vezes, um menor de idade, maltrapilho e evadido da escola. São os flanelinhas, apelido que se convencionou dar aos guardadores de carros informais que atuam nas ruas das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e outros centros urbanos brasileiros.

A julgar pelos registros em antigos jornais, a profissão surgiu nos anos 1930 — em São Paulo, a mais antiga menção consta em reportagem do jornal Folha de S.Paulo, datada de 1934. Na virada para os anos 1940, segundo reportagens da época, eram 18 os guardadores de carro que atuavam na capital paulista.

Pesquisadores, porém, situam a atividade como anterior, inclusive, à popularização dos automóveis. “Há indícios de ‘fiscais’ de carroças e carruagens desde o século 18, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro”, conta o sociólogo Giuliano Salvarani, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Com o aumento da frota e da violência urbana [ao longo do século 20], essa tornou-se uma ocupação, sobretudo em áreas mais adensadas”, completa.

Cuidado pago

Apesar de, em uma primeira camada do discurso, soar como função apta a zelar ou proteger os bens alheios, a natureza da atuação do flanelinha denota vários problemas. A começar, uma dolorosa questão social — aquele que se sujeita a ganhar dinheiro fazendo isso é uma pessoa que não conseguiu colocação profissional adequada. Nas palavras de Salvarani, alguém “que está à margem da legalidade, pois nem se trata de subemprego”. Outra questão polêmica está no fato de que os flanelinhas estão o tempo todo atuando nos limites entre a legalidade e a ilegalidade. “É um crime de extorsão reconhecido pela jurisprudência”, afirma o sociólogo.

O advogado criminalista Guilherme Augusto Mota salienta que a atividade do guardador de carros, em si, não é crime. O problema está nos limites dessa atuação. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o simples exercício da função, ainda que sem registro, não caracteriza a contravenção. No entanto, a conduta torna-se criminosa quando o guardador atua com grave ameaça ou violência para obter pagamento, praticando a extorsão, explica Mota.

Em outras palavras, se ele atuar de forma gratuita apenas na expectativa de uma gorjeta, não há nada de errado. No entanto, a grande maioria exige pagamento — e isso, considerando que se trata de uma via pública, seria coação, que é um crime. Essas ameaças, como lembra o criminalista, na maior parte das vezes aparece de forma velada. É quando o flanelinha fala “vou olhar para não acontecer nada”, enfatizando o “não acontecer nada”, ou quando promete “memorizar a placa” daquele que não pagou.

“O flanelinha é, supostamente, aquele que protege o carro estacionado, muitas vezes em área proibida, de eventuais fatores supervenientes. Há um fato cínico semelhante ao que ocorre na máfia, que é a promessa de segurança”, analisa Salvarani, da ESPM. “Portanto, já é reconhecido que a atividade do flanelinha corresponde ao crime de extorsão, uma vez que constrange o motorista a pagar um valor para que não aconteça nada com seu veículo. Estão presentes todos os elementos da extorsão”, reforça. Ele lembra ainda que, como quase sempre o flanelinha atua em grupos, existe a possibilidade de ser enquadrado também por “associação criminosa”.

Mesmo diante das evidências expostas pelos especialistas e do sentimento de intimidação do guardador de carros, a atividade não parece ser fiscalizada ou coibida pelas autoridades policiais. “A primeira condição que a viabiliza é a naturalização de criminalidade, sobretudo pelas forças de segurança. Os flanelinhas cometem crimes sob os olhares dos policiais, que não os reconhecem como criminosos”, critica Salvarani. E acrescenta que uma segunda condição é o controle institucional, tendo em vista que, em algumas áreas, os flanelinhas são controlados pelo crime organizado, como as facções e as milícias, que usam o exército de reserva das periferias para arrecadar com esses pequenos delitos.

Vista grossa

Segundo Mota, é possível dividir em três partes os problemas da atuação dos flanelinhas. Em primeiro lugar, o que eles fazem pode ser configurado como “apropriação privada de espaço público”, criando uma espécie de “taxação paralela” dos estacionamentos. O outro ponto é a “sensação de insegurança e de conflito urbano”, sobretudo “quando a abordagem é insistente ou intimidatória”. Por fim, o fato de que muitas vezes eles representam “risco de dano ao patrimônio”, por causa das ameaças que geram tensão e, quando comprovadas, configuram ilícito penal.

Salvarani acredita que frequentemente os policiais aliviam para os flanelinhas porque o que fazem é considerado crime de baixa periculosidade, sendo até mesmo socialmente aceito por parte da população. “Há a necessidade de se conscientizar a sociedade de que o flanelinha é um criminoso e que essa prática é ilícita”, argumenta o sociólogo, que defende que motoristas se recusem a fazer pagamentos e denunciem a conduta dos guardadores à polícia.

O sociólogo também sugere a instalação de pontos de fiscalização em ruas ou espaços onde a prática seja recorrente, além de programas de conscientização da sociedade. “Um verdadeiro advocacy para orientar as delegacias e os tribunais a imputarem penas mais rigorosas”, conclui.

Edison Veiga
Annima de Mattos
Edison Veiga
Annima de Mattos