“A floresta não pode e não deve continuar a ser olhada como ocupante transitória do terreno, onde permanece apenas até o momento em que surge a necessidade de seu extermínio.” Clara Pandolfo, no relatório A Floresta Amazônica Brasileira: Enfoque Econômico-Ecológico, de 1978
Clara Pandolfo (1912–2009) pertence ao grupo restrito de cientistas cuja obra atravessa décadas e retorna ao centro do debate quando o Brasil, enfim, alcança o tempo das suas ideias. Há algo de profundamente simbólico nesse descompasso histórico. Durante anos, a Amazônia foi tratada como apêndice distante das prioridades nacionais, enquanto Clara a estudava com método, ambição intelectual e a convicção de que ali se definia parte decisiva do futuro do País.
Essa redescoberta ganha mais força agora, impulsionada pelo livro Clara Pandolfo: uma cientista da Amazônia (MTC Comunicação Criativa, 2025), recém-lançado por seu neto, o jornalista e escritor Murilo Fiuza de Melo. Ao examinar arquivos, relatórios e manuscritos, Melo recompõe a trajetória de uma cientista que não trabalhou para ser pioneira — apenas levou suas convicções às últimas consequências. “Clara Pandolfo foi uma das cientistas mais importantes da história da Amazônia”, afirma. E completa: “Visionária, ela idealizou o monitoramento do desmatamento por satélite, do qual o Brasil atualmente é referência mundial, e defendeu o manejo florestal sustentável como principal política pública para a região”.
A história revelada por Melo não segue o arco tradicional dos personagens celebrados. Clara não buscou protagonismo, tampouco se encaixou no papel romântico da pesquisadora isolada. Ela pensou a Amazônia por dentro de suas instituições — primeiro, na Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), depois, na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) — e fez isso com rara combinação de rigor técnico e coragem política.
Desde sua formação na antiga Escola de Chimica Industrial de Belém, no Pará, influenciada pelo botânico francês Paul Le Cointe (1870–1956), Clara compreendeu que a floresta exigia ciência local, continuidade e compromisso.
Quando os estudos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, pela sigla em inglês) evidenciaram a complexidade da Floresta Amazônica, Clara entendeu que o Brasil precisava desenvolver técnicas próprias de manejo, concebidas a partir do território. Recomendou concessões florestais planejadas, formação de mão de obra amazônida e um serviço florestal capaz de fiscalizar o uso dos recursos naturais. A proposta, avançada demais para a época, não encontrou acolhida institucional. Ainda assim, ela continuou.
O conflito não era técnico, mas político. Em 1976, Clara conseguiu aprovar, na Sudam, uma resolução que restringia o financiamento público para projetos agropecuários instalados em mata fechada. A medida seria posteriormente desrespeitada, permitindo o desmatamento de milhares de hectares. O episódio apenas reforçou a sua percepção de que o País precisava desenvolver instrumentos independentes de monitoramento.
Quando teve acesso às primeiras imagens do satélite Earth Resources Technology Satellite (ERTS), da norte-americana Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa, pela sigla em inglês), enviadas para o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Clara viu, além de experimentação científica, política pública. Em 1973, articulou o primeiro convênio oficial para identificar áreas desmatadas por meio de sensoriamento remoto, uma experiência que se tornaria referência internacional.
Pesquisador aposentado do Inpe, Antônio Tebaldi Tardin sintetizou a contribuição da cientista, afirmando que ela “viabilizou o sensoriamento por satélite no Brasil e deu justificativa mais que plausível para que o País entrasse no programa espacial”.
Essa integração entre tecnologia, ciência e território (base da atual transição ecológica) foi formulada por Clara num período em que o País tratava a Amazônia como reserva infinita de expansão agropecuária. Seu pensamento permanece atual porque é estrutural, não circunstancial. Segundo Melo, a sua obra está fincada em duas convicções essenciais: “Clara nasceu, viveu e morreu fazendo ciência a partir da Amazônia. E defendia que os amazônidas deveriam se apropriar da sua região”.
Nada na trajetória da cientista sugere improviso. Há método, observação, análise de dados e uma compreensão sofisticada da economia florestal. Quando escreveu, em 1978, que a floresta não podia ser tratada como “ocupante transitória do terreno”, não fazia retórica ambiental, mas, sim, diagnóstico técnico, fundamentado em décadas de estudo.
Melo também recupera a dimensão humana dessa trajetória: a mulher que atravessou ambientes institucionais hostis às vozes femininas e, mesmo assim, construiu uma obra rigorosa, influente e hoje indispensável para compreender o desenvolvimento sustentável da região. Não há romantização em seu relato — apenas a reconstrução de uma vida dedicada à ciência pública.
Não há grandiloquência na história de Clara. Há precisão científica, coragem política e uma visão que só pode nascer de quem vive o território por dentro. O seu neto recupera essa trajetória com afeto e rigor, devolvendo-lhe o lugar que sempre mereceu — o de uma das mentes mais lúcidas que já pensaram a Amazônia. E, ao fazê-lo, Melo expõe uma verdade simples e incontornável: para projetar o futuro da região, é impossível ignorar quem o antecipou com tanta clareza.
Década de 1930 — Formação pioneira
Ingressa na antiga Escola de Chimica Industrial de Belém, no Pará, tornando-se a primeira mulher formada em Química no Norte do Brasil. É influenciada pelo botânico francês Paul Le Cointe (1870–1956), que molda a própria visão científica sobre a Amazônia.
1954 — Entrada na SPVEA
Começa a atuar na SPVEA, onde tem acesso aos estudos da missão da FAO sobre o primeiro inventário florestal da região.
1957–1968 — Consolidação da pesquisa florestal
Participa diretamente da implementação e continuidade do Centro de Tecnologia Madeireira (CTM), na cidade paraense de Santarém, espaço experimental dedicado ao manejo florestal sustentável.
1972 — O encontro com o satélite
Tem acesso às primeiras imagens do satélite Earth Resources Technology Satellite (ERTS), enviadas para o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Identifica ali uma ferramenta estratégica para monitoramento do desmatamento.
1973 — Convênio pioneiro com o Inpe
Viabiliza o primeiro convênio oficial entre a Sudam e o Inpe para identificar áreas desmatadas no Mato Grosso, por meio de sensoriamento remoto. O teste funciona e abre caminho para uma nova política de fiscalização ambiental.
1976 — A resolução histórica
Consegue aprovar a Resolução 2.525 no Conselho Deliberativo da Sudam, proibindo financiamento público para projetos agropecuários em áreas de mata fechada. A iniciativa enfrenta forte resistência política.
1978 — O relatório que marca época
Publica o estudo A Floresta Amazônica Brasileira: Enfoque Econômico-Ecológico, no qual defende o manejo florestal sustentável como eixo de desenvolvimento da região. A frase que é alicerce do documento torna-se síntese de seu pensamento.
Anos 1980 — Resistências e desmontes
Vê decisões internas da Sudam desrespeitarem o parecer técnico que fundava sua política de proteção, incluindo a autorização de desmatamento de 9.350 hectares no Acre.
2009 — Falecimento
Morre em 31 de julho de 2009, deixando uma obra subestimada por décadas, mas profundamente atual.
2023–2024 — Redescoberta
O anúncio da 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP30) da Organização das Nações Unidas (ONU), em Belém, reacende o interesse por sua obra. Seu neto, Murilo Fiuza de Melo, retoma manuscritos e lança o livro Clara Pandolfo: uma cientista da Amazônia, que resgata a dimensão intelectual e política de sua história.