Você conhece a biblioteconomista Ignês Madalena Aranha de Lima, formada em 1946 pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP)? Não? Mas, sem dúvida, já deve ter ouvido falar de Inezita Barroso, cantora, atriz, instrumentista e apresentadora, durante 35 anos, do programa Viola, Minha Viola, exibido semanalmente pela TV Cultura de São Paulo.
Falemos primeiro da menina nascida em 4 de março de 1925, uma quarta-feira de cinzas, no mesmo bairro paulistano da Barra Funda onde morava o poeta e escritor Mário de Andrade, de quem herdaria a paixão pela música popular e a missão de preservar o folclore brasileiro.
A família tradicional e abastada de origens espanhola e indígena proporcionou-lhe uma infância feliz em ambiente repleto de cultura — tanto a erudita, da metrópole, como a popular, de caráter rural, absorvida nas férias passadas nas fazendas de parentes. Aos sete anos, cantava e tocava violão e viola. Aprendeu declamação, dicção e violão clássico com Mary Buarque, professora que trouxe dos Estados Unidos modernos métodos de ensino infantil de música.
Nas suas festas de aniversário, era presença assídua o compositor e intérprete de música caipira Raul Torres, que, apesar do sucesso que fazia no rádio, mantinha o emprego na Estrada de Ferro Sorocabana, de cuja diretoria fazia parte Olynto Ayres de Lima, pai da menina que então ainda era Ignezita.
Três instituições da elite paulistana foram fundamentais para que a irrequieta adolescente, que até os 15 anos jogava bola com meninos na rua, tivesse os ambientes cultural e social apropriados para a formação da sua personalidade e dos seus rumos futuros.
Aluna na Escola Normal Caetano de Campos, primeira do gênero no Estado de São Paulo, a jovem continuou os estudos no mesmo prédio, pois a USP, que ainda não tinha o campus do Butantã, mantinha ali o curso superior de Biblioteconomia.
Praticante de esportes como tênis e natação, foi nas piscinas do tradicional Clube Paulistano que ela conheceu Adolfo Cabral Barroso, estudante na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP, o marido cujo sobrenome ela preservaria, mesmo depois de separada, como parte de sua identidade artística, ao lado do diminutivo Inezita, grafado sem a letra G para mais fácil assimilação.
Casou-se em 1947 e, após a graduação universitária, ela logo se enturmou com colegas de Adolfo, como os futuros atores Paulo Autran e Renato Consorte, tornando-se uma espécie de musa do Centro Acadêmico XI de Agosto, sendo a única mulher a fazer parte do grupo, como relata Arley Pereira, autor da biografia Inezita Barroso — a história de uma brasileira (Editora 34, 2013).
Aos sábados, os acadêmicos reuniam-se na casa dos Barroso com um agregado, o estudante de medicina Paulo Vanzolini, para serenatas acompanhadas de pizza e cerveja. Não por acaso, em 1953, quando Inezita gravou num disco de 78 rotações o seu primeiro e maior sucesso, Moda da pinga (de Ochelsis Laureano e Raul Torres), o lado B foi preenchido por Ronda.
Essa obra-prima de Vanzolini, que permaneceu desconhecida do público por muito tempo, entrou na gravação apenas porque ele estava acompanhando a amiga nos estúdios da RCA Victor e era o único compositor disponível para assinar a imprescindível autorização, de modo a permitir que a bolacha sonora tivesse músicas dos dois lados.
Também batiam cartão, na casa de Inezita, artistas do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), como a atriz Cacilda Becker e o diretor Ziembinski. Como cantora, acompanhando-se ao violão, ela participou de algumas montagens do TBC, como O homem da flor na boca, de Luigi Pirandello, protagonizada pelo ator Sérgio Cardoso.
Até que, em uma viagem ao Nordeste, no início dos anos 1950, Inezita foi convencida pelo maestro Capiba, no Recife, de que tinha condições para se profissionalizar como cantora, tendo como foco a música folclórica e regional. Em seu primeiro LP, lançado pela gravadora Copacabana, gravou canções como Funeral de um rei Nagô (Hekel Tavares), Viola quebrada (Mário de Andrade) e Mineiro tá me chamando (recolhida por Zé do Norte). O segundo LP dedicou às Danças gaúchas e o terceiro resumia no título o que seria a marca definitiva de Inezita: Lá vem o Brasil. No total, ao longo de várias décadas, foram mais de 80 discos gravados, entre 78 rotações, vinis e CDs.
Na década de 1950, dedicou-se também a uma curta carreira de atriz, atuando nos filmes Ângela (1950), Destino em Apuros (1953), É proibido beijar (1954) e Carnaval em lá maior (1955). Recebeu o prêmio Saci de melhor atriz pela atuação em Mulher de verdade (1953). No filme O craque (1953), ela dividiu a tela com os jogadores do Corinthians, o seu time do coração.
Em 1957, percorreu 6 mil quilômetros dirigindo um jipe para conhecer as manifestações culturais populares do Nordeste brasileiro, consolidando a carreira de folclorista. Além dos shows e dos programas de rádio e televisão, a cantora e pesquisadora lecionou e fez palestras sobre folclore em escolas e faculdades. Foi professora, em São Paulo, no Centro Universitário Assunção (Unifai) e na Unicapital, onde recebeu o título de doutora honoris causa em Folclore Brasileiro. Em 2003, foi condecorada pelo Governo do Estado de São Paulo com a Ordem do Ipiranga, como “comendadora da música folclórica brasileira”.
Em 1980, Inezita passou a comandar um dos programas mais longevos da televisão brasileira, que resistiu a todos os modismos da indústria cultural, preservando a música caipira e de raiz. No início, Viola, Minha Viola era um programa de estúdio criado pelo radialista Moraes Sarmento, que tinha urticária ao ouvir a música dita sertaneja, por ele rebatizada como “sertanojo”.
Transmitido pela TV Cultura, que, como emissora pública, não tinha que se curvar aos índices de audiência ou aos interesses de patrocinadores, o programa passou a ser gravado no Teatro Franco Zampari, na Avenida Tiradentes, em São Paulo, diante de uma plateia entusiasmada, engrossada por caravanas de ônibus vindos do interior. “Eta, programa que eu gosto!”, era o bordão de Inezita para apresentar duplas como Tonico e Tinoco e Pena Branca e Xavantinho, ou para revelar a violeira sul-matogrossense Helena Meirelles, destacada depois pela revista estadunidense Guitar Player.
Inezita Barroso morreu em São Paulo, em 8 de março de 2015, poucos dias após completar 90 anos, deixando como legado principal o resgate da viola. Outrora considerado instrumento tosco, dedilhado por caipiras sem formação musical, passou a ser adotado por orquestras e tornou-se símbolo de memórias, sentimentos, lugares, pessoas, tradições e modos de ser e viver.