A exemplo de Cartola e Nelson Cavaquinho — compositores com os quais é comparado — Oscar da Penha, o Batatinha, fazia sambas tristes, com letras poéticas e melodias pungentes, classificadas pelo conterrâneo Gilberto Gil como uma espécie de “blues brasileiro”. Maria Bethânia, responsável por torná-lo conhecido fora da Bahia, definiu-o assim: “Gosto de Batatinha como gosto da luz da lua, do som do tamborim, do samba em tom menor, das coisas tristes e simples. Batatinha, para mim, é uma pessoa rara, um artista”.Nascido há cem anos em Salvador, no dia 5 de agosto de 1924, órfão de pai e mãe,
Oscar da Penha começou a trabalhar aos dez anos de idade como marceneiro. Foi também entregador de marmita, office boy e operário gráfico antes de ser conhecido como o cantor e compositor Batatinha, que faria o samba voltar a brilhar no seu território de origem, a Bahia.
O apelido, que se tornaria nome artístico, surgiu em um programa da Rádio Sociedade da Bahia, comandado pelo cronista pernambucano Antônio Maria, a quem coube diferenciar o calouro — que se apresentava como Vassourinha — do sambista carioca homônimo que o havia inspirado pelas ondas do rádio. Ancorado na gíria da época que traduzia “gente boa” como “batata”, o locutor anunciou “Oscar da Penha, o Batatinha”, homem que, em 72 anos de vida, nos legou mais de 70 canções e quatro discos gravados.
A obra de Batatinha tem como influência tanto os mestres da Era do Rádio como o samba do Recôncavo Baiano, o que lhe permitiu criar uma identidade própria, protegida por um casulo — como ele nunca saiu do Estado natal, as composições foram sendo reveladas aos poucos, à medida que eram gravadas por grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB). O primeiro samba, ainda nos anos 1940, foi Inventor do trabalho: “O tal que inventou o trabalho/Só pode ter uma cabeça oca/Pra conceber tais ideias/Que coisa louca/O trabalho dá trabalho demais”.
Na vida pessoal, porém, o arquétipo do malandro, entronizado nos morros do Rio de Janeiro, pouco tinha a ver com ele. Educado e fino no trato, desdobrava-se em dois empregos: durante o dia, como funcionário público na Imprensa Oficial da Bahia; à noite, como tipógrafo no Diário de Notícias.
Os dedos que agrupavam letras para compor as linhas de chumbo, também batucavam nas caixas de fósforos ao marcar o ritmo de canções como Jajá da Gamboa, primeira composição gravada, em 1960, por Jamelão, célebre intérprete dos sambas-enredo da Mangueira.
Casado aos 16 anos com Marta, a única esposa até o fim da vida, com quem teve nove filhos, era “diplomado em matéria de sofrer”, como revela o samba Diplomacia, uma de suas obras-primas, gravado por Bethânia em seu primeiro disco (em 1965) e incluída por Glauber Rocha no filme Barravento.
Negro retinto, mas precocemente grisalho, foi assim definido pelo conterrâneo e amigo Clementino Rodrigues, o Riachão: “Uma cabeça cheia de cabelos brancos; cada fio uma nota musical”. Compositor e sambista mais conhecido nacionalmente do que Batatinha, Riachão era o seu oposto, por ser autor de uma obra marcadamente alegre, puxada pelo samba de roda Cada macaco no seu galho (Chô, Chuá).
Nos anos 1970, ambos gravaram o antológico disco Samba da Bahia, que apresenta a tríade dos mestres sambistas baianos, completada por Vivaldo Jesuíno de Souza, o Panela, vencedor de 14 concursos carnavalescos em Salvador com sambas, marchas-rancho e marchas. Autor do hino do Esporte Clube Vitória, Panela morreu de enfarte em Salvador, aos 55 anos, justamente durante um show em homenagem a Batatinha.
No encarte do LP Samba da Bahia, Paulinho da Viola não poupa elogios ao colega baiano: “Eu o coloco ao lado de um Nélson Cavaquinho e um Cartola, no nível da poesia popular mais pura. Digno representante do samba mais verdadeiro que conheço”. Em retribuição, Batatinha compôs Ministro do Samba, que termina com os versos “Salve o Paulinho da Viola/Salve a turma de sua escola/Salve o samba em tempo de inspiração. O samba bem merecia/Ter ministério algum dia/Então seria ministro Paulo César Batista Faria”.
No celebrado LP Rosa dos Ventos, de 1971, Bethânia revelou para o Brasil todo o lirismo da poesia de Batatinha com duas canções. “Tenho ainda guardada/Como lembrança do carnaval que passou/Uma toalha bordada que na escola de samba/Um lindo rosto enxugou”, dizem os versos iniciais de Toalha da Saudade. Já em Hora da Razão, ele questiona “Se eu deixar de sofrer/Como é que vai ser/Para me acostumar”. No álbum Drama, de 1972, a cantora incluiu a canção O circo, autêntico desabafo de um artista que nunca conseguiu viver da própria arte: “Todo mundo vai ao circo/Menos eu, menos eu/Como pagar ingresso/Se eu não tenho nada?/Fico de fora escutando a gargalhada”.
A mais poderosa expressão de resistência e identidade cultural de sua obra soa completamente atual. “É proibido sonhar/Então me deixe o direito de sambar”. Em tempos distópicos nos quais direitos conquistados com muita luta são relativizados e se desvanecem sonhos de uma sociedade menos desigual, Direito de sambar exalta essa forma de expressão coletiva adotada pelo povo brasileiro para encarar as adversidades.
Após a sua morte, em 1997, é lançado como homenagem póstuma o CD Diplomacia, com 17 canções autorais interpretadas por ele mesmo e convidados como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e, claro, Bethânia. Também nesse ano um dos circuitos do carnaval de Salvador, o do Pelourinho, é batizado com o nome do sambista.
Em 2006, a cantora Adriana Moreira gravou um disco só com músicas do compositor baiano. A história de Oscar da Penha é contada em dois documentários disponíveis no YouTube: Batatinha e o samba oculto da Bahia, dirigido por Pedro Habib, e Batatinha, o poeta do samba, de Marcelo Rabelo, que reconstitui a trajetória do sambista sob a ótica dos filhos. Em Salvador, na casa onde viveu, no número 68 da Ladeira dos Aflitos, hoje funciona o Batatinha Bar, comandado pela cantora Patrícia Ribeiro, que organiza toda as quartas-feiras concorrida roda de choro.