Raio-X do audiovisual

12 de novembro de 2024

I

Impulsionados na pandemia, os serviços de streaming ganharam protagonismo e transformaram, de maneira definitiva, o cenário audiovisual no Brasil e no mundo. Até pouco tempo atrás, era inimaginável acompanhar uma série coreana ou garimpar um curta-metragem restrito a circuitos de festival. Hoje, com a disseminação das plataformas de vídeo sob demanda (ou VoD, do inglês video on demand), esses feitos se tornaram não só possíveis como também parte do cotidiano de muitos brasileiros — e em diversas telas. Dados da consultoria australiana Finder, que mensura os 18 principais mercados de streaming do mundo, apontam que 65% dos adultos do País têm pelo menos um serviço do tipo, bem acima da média global (56%) e atrás apenas da Nova Zelândia (65,26%). Já de acordo com pesquisa da Serasa Experian, cerca de 23,8 milhões de brasileiros são consumidores usuais desses serviços.

Com assinatura mensal muitas vezes mais barata que um ingresso de cinema — e levando em conta o exponencial crescimento do acesso à internet —, filmes, realities e, principalmente, séries se tornaram um fenômeno viral por aqui. “O Brasil já tinha a tradição de consumir muita internet, não à toa somos um dos países que mais usa redes sociais do mundo. O streaming vinha crescendo muito, havia uma aposta grande no setor e, durante a pandemia, novos hábitos foram criados. Quem não assistia passou a assistir”, compara Pedro Butcher, professor, crítico e pesquisador especializado em cinema.

Uma pesquisa da Conviva, empresa especializada em inteligência integrada de dados,  mostrou que esses serviços cresceram 20% em todo o mundo já em março de 2020, no início do confinamento, em comparação com dados de duas semanas anteriores. No Brasil, a plataforma Telecine Play registrou um aumento de 400% no número de cadastros. O tempo médio de consumo da TV aberta também cresceu na pandemia, saltando para 7 horas e 9 minutos por dia, ou seja, 37 minutos a mais. A parcela de tempo dedicada ao jornalismo também aumentou: de 21%, em abril de 2019, para 30%, um ano depois. Os dados são da Kantar IBOPE Media

Novela tipo exportação

Além de consumir mais, o País passou também a criar. Antes, a produção audiovisual nacional era limitada a uma grande rede de TV e a um cinema com poucos recursos. Agora, com o streaming, essa realidade está mudando. E essa produção nacional ainda rompe fronteiras: um dos maiores cases de sucesso recentes é Pedaço de mim, protagonizado por Vladimir Brichta e Juliana Paes, cuja personagem se depara com uma gravidez de gêmeos, porém fruto de dois pais diferentes. O drama da Netflix caiu nas graças do público e foi a primeira série nacional a se manter no Top 10 Global da plataforma por quatro semanas consecutivas, atingindo o primeiro lugar no Brasil, na Argentina, na Bolívia, no Equador, no México e no Paraguai. Na Itália e em Portugal, ficou em segundo; e na França, em terceiro.

De acordo com Maurício Farias, diretor artístico da trama e de séries renomadas da TV Globo, como A grande família e Tapas e beijos, esses números são a prova de que a nossa dramaturgia dialoga muito bem, inclusive mundialmente. “Foi uma surpresa para muita gente atestar que somos, sim, capazes de fazer algo dessa qualidade. Nós só não tínhamos acesso”, revela, já que as plataformas possibilitaram que os conteúdos fossem exibidos de uma forma nunca antes experimentada. O Brasil sempre foi um grande exportador de novelas, mas fica mais fácil entregar o produto quando tudo pode ser consumido até no celular. 

O diretor explica que o próprio formato implica novas necessidades dramatúrgicas, como uma grande retenção inicial logo nos primeiros três minutos. “Na TV, você até sai, mas volta. No streaming, você não volta”, analisa. Além de uma narrativa mais concisa, com menos núcleos paralelos e estética mais sofisticada, Farias revela que, de maneira diferente de uma novela, que é filmada quase que integralmente em estúdio para uma maior praticidade, conforto e segurança da equipe, a série foi toda gravada em áreas externas, como casas e locações de verdade. “E o público nota. Faz toda a diferença”, destaca o diretor. 

No mercado audiovisual há quase 20 anos, Paulo Barcellos, CEO da O2, relembra que, no início, ou se fazia publicidade ou filme incentivado com recursos públicos — com limitações de orçamento. “Vivi essa dificuldade extrema de viabilizar projetos. Até que chegaram as plataformas de streaming no Brasil e deu início a um boom, inclusive com possibilidades de gêneros diferentes. Porque era até possível fazer comédia barata, mas não um filme de ficção científica”, compara. Ele lembra que, apesar de projetos não tão acertados da produtora nos primeiros anos nas plataformas, agora é “um acerto após o outro”, com séries como As aventuras de José & Durval, Cidade invisível e Cangaço novo. Neste momento, o executivo espera bons resultados com o spin-off (produção derivada de outra, que expande um universo já apresentado) do premiado filme Cidade de Deus, original da HBO que chegou à Netflix em agosto. 

Sinal amarelo, novos modelos 

A despeito do forte crescimento do mercado de streaming na última década, atingindo o pico na pandemia, 2023 foi o pior ano para novos clientes, segundo relatório da Antenna Research. Ainda que o total de assinaturas tenha crescido 242,9 milhões, no ano passado — adicionando 164,7 milhões de pessoas —, a indústria amargou queda de cerca de 50%, além de registar o maior número de cancelamentos dos últimos cinco anos. Para o crítico e pesquisador Pedro Butcher, o streaming gerou uma ilusão de que seria “a grande solução”, ao passo que se criaram projeções muito otimistas de que haveria uma expansão constante. “Mas o serviço ainda é um negócio novo e depende do mercado financeiro, de mercado futuros. A própria Netflix foi deficitária por muito tempo e já precisou repensar seu modelo”, esclarece. 

O aumento da concorrência estimulou as plataformas a buscar novas fontes de receita para não depender exclusivamente das assinaturas. A Netflix, por exemplo, lançou, no fim de 2022, um plano com anúncios e proibiu o compartilhamento de senhas. A Prime Video, da Amazon, por sua vez, demitiu trabalhadores e vem reformulando os negócios para centrar investimentos em áreas mais lucrativas. “Quando a fonte começa a secar, os países com mais dificuldades (como o nosso) que começam a sentir primeiro. Muitos projetos nacionais não fizeram o sucesso esperado, e as empresas reajustaram as expectativas”, pontua Barcellos, da O2. De acordo com a NordVPN, especializada em cibersegurança, o brasileiro passa, em média, 92 horas por semana na internet. A atividade que mais toma tempo da vida online da população é assistir a filmes e séries por streaming, com 13 horas. “É uma média altíssima. Para os players, é uma corrida pelo ouro. Quem dominar o nosso mercado, comandará o jogo de streaming. Tenho a sensação de que, com mais cinco anos de investimentos, o País vire uma Coreia do Sul”, profetiza Barcellos. O país asiático se tornou uma potência na produção do conteúdo, com sucessos globais como Round 6 e Barganha, além das novelas com romances açucarados — conhecidos como “doramas” —, com amplos investimentos do Estado e da iniciativa privada.

Em relação ao conteúdo nacional, o Panorama do Mercado de Vídeo por Demanda no Brasil 2023, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), mostra que, dos 24 principais serviços ofertados no País, apenas cerca de 9% das obras disponíveis contam com Certificado de Produto Brasileiro (CPB). Nas operadoras de TV paga tradicionais, por exemplo, o porcentual de conteúdo nacional supera os 17%. No streaming, ainda segundo o levantamento da Ancine, apenas 6,3% são classificados como obras brasileiras. Nesse recorte dos 24 principais serviços ofertados no Brasil, o documento destaca que as plataformas brasileiras do gênero são as que têm maior participação de conteúdos nacionais, enquanto nas estrangeiras, essa fatia muitas vezes não ultrapassa 5%. O serviços com menor participação do conteúdo doméstico são Star+ (3%), HBO Max (2,7%) e Disney+, com apenas 1,3% de títulos brasileiros. Já a Globoplay lidera, com cerca de 1,2 mil títulos. “Produzimos audiovisual bom há muito tempo. Entretanto, é preciso vontade política. A cultura precisa estar apoiada pelo Estado para que possamos competir de igual para igual”, acredita o diretor Farias. Lia Bahia, pesquisadora e professora de Cinema, endossa: “Precisamos de políticas públicas. Caso contrário, estaremos sempre reféns das grandes internacionais”.

Mesmo que já pareça tão arraigada, a “cultura das séries” que o streaming tem instaurado no Brasil precisa ser analisada com cautela, segundo Lia, já que a importação de um modelo norte-americano provoca impactos estéticos, éticos, políticos e econômicos. “Por que as pessoas não conseguem mais assistir a um filme de duas horas no cinema, mas são capazes de maratonar três episódios de uma série de uma vez? Essa colonização do audiovisual tem mudado, inclusive, a nossa espectatorialidade”, defende. Para ela, naturalizou-se o fato de que as séries precisam ser fabricadas sempre nos mesmos formato e padrão estético, sem levar em conta as nossas singularidades. “As fotografias, por exemplo, são escuras, como se atestassem um certo padrão de qualidade. Mas moramos em um país tropical, com cores vibrantes”, pondera.

Na sala escura

Já nas salas de cinema, foram lançados 161 longas brasileiros e 254 estrangeiros em 2023, de acordo com a Ancine. Os filmes nacionais levaram 3,7 milhões de espectadores aos cinemas no ano passado, parcela que representa apenas 3,2% do público. O resultado é 84,6% menor que o de 2019. Quatro filmes brasileiros tiveram público superior a 300 mil espectadores, dentre os quais a maior bilheteria foi Nosso sonho, com mais de 500 mil ingressos vendidos. Já dentre as produções estrangeiras, Barbie levou 10,7 milhões de pessoas às salas do cine. 

A verdade é que o total de público ainda não retornou ao nível do período pré-pandemia, 36% menor em 2023 em comparação a 2019. Utilizando a média de público dos três anos anteriores à covid-19 (2017–2019) em relação aos dados do ano passado, observa-se que a recuperação do mercado brasileiro nesse período (65,5%) é inferior à alcançada por países como Argentina (92%), França (86,9%), Portugal (80,3%), México (67,9%), Estados Unidos e Canadá (65,7%). “O que está em crise não é a sala de cinema em si, mas o lugar que precisa estar aberto sete dias por semana, com exibições seguidas. Hoje em dia, é muito difícil uma sala se movimentar dessa forma. Acredito numa programação criativa, com salas de uso híbrido, com música e debates, como alguns cineclubes já estão fazendo”, acredita o professor Butcher.

Embora esteja frequentando menos o cinema — o que é ruim pelas perdas da experiência coletiva e da beleza que a sala escura proporciona —, o diretor Jungle acredita que estamos consumindo audiovisual como nunca. “Criou-se uma cultura do audiovisual. Antes, a TV era o nosso grande farol. Hoje, temos muitas lâmpadas em todos os cômodos da casa — os celulares. Com o streaming, toda a diversidade do mundo está na palma das mãos, para o bem e para mal”, afirma. Para o especialista, muda a forma de contar a história: no cinema, há o tempo para abertura, créditos iniciais, introdução, e só depois a história começa a se desenrolar. Já no serviço sob demanda, sem um começo impactante, o espectador vai embora. “É preciso socos, matança e gritos logo nos primeiros segundos. Só assim que a curiosidade vai levá-lo a navegar pela série. Trata-se de uma necessidade para quem procura conteúdo em massa dentro dos celulares”, analisa Jungle. 

Acesso a quem vê e a quem produz

Se a chegada da tecnologia digital ao cinema, no fim dos anos 1990, representou um marco, tornando-o mais acessível e democrático, as políticas públicas no início da década de 2000 possibilitou, pela primeira vez, a existência de novas narrativas e protagonistas — até então receptores de cultura, e não produtores. A estruturação do fomento via editais públicos e a descentralização da produção do eixo Rio–SP para outras regiões do Brasil, além do crescimento dos coletivos nas periferias e de novos processos de produção e difusão, redesenharam o audiovisual nacional. Nessa toada, novas produtoras surgiram, como a Rosza Filmes, de São Félix (no Recôncavo Baiano), e a Filmes de Plástico, da cidade mineira de Contagem, cujo longa Marte Um foi escolhido para representar o Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2023. “Um filme que vem de uma periferia, que tem um elenco negro e um diretor negro. E a gente sabe tudo o que isso representa para a história do cinema brasileiro”, disse o diretor, Gabriel Martins, à época da pré-seleção para a premiação.

Estela Renner, diretora de cinema, roteirista, produtora e cofundadora do estúdio de impactos social e ambiental Maria Farinha Filmes, acredita que o audiovisual tem um potencial muito grande de gerar mudanças e transformações pelo mundo. Ela cita uma pesquisa da consultoria global GlobeScan, revelando que 65% da população mundial desejam a transformação. “As pessoas querem ver conteúdos com propósito”, conta, explicando o sucesso da série Aruanas, original Globoplay, assistida por mais de 35 milhões de pessoas por episódio, colocando a Amazônia e as mudanças climáticas em pauta no mundo. “Sabemos que os territórios sempre estiveram em guerra. Mas existe o território coletivo, que é da nossa imaginação. Esse, sim, é amplamente disputado hoje.” O audiovisual, segundo ela, é uma importante ferramenta de mudanças, já que as “histórias movem, curam e nos trazem uma noção de coexistência”. 

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #483 (OUT/NOV) DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.

Denise Meira do Amaral Takeuchi Annima de Mattos
Denise Meira do Amaral Takeuchi Annima de Mattos