Tecnologia da reforma

29 de julho de 2025

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No fim de 2023, o Congresso brasileiro aprovou o esqueleto de uma reforma histórica de seu sistema tributário, um avanço celebrado como o ápice de décadas de discussões e idas e vindas legislativas. Também ficou claro que a aprovação era apenas a primeira etapa de uma longa jornada rumo à implementação, com desfecho previsto apenas em 2033. Há, ainda, a necessidade de uma série de adaptações tecnológicas para fazer o novo sistema rodar.

Nesse sentido, o Brasil deu um passo importante: em julho, entrou em operação o projeto-piloto da infraestrutura digital que será utilizada pela Receita Federal. Mais de 50 empresas indicadas por entidades setoriais já participam da iniciativa, usando uma nova plataforma — criada pela Receita em parceria com o Serviço de Processamento de Dados (Serpro) — para processos relacionados à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) federal.

O objetivo central da Reforma Tributária é modernizar e simplificar o complexo sistema do País, consolidando cinco impostos multiníveis em dois IVAs: a CBS, federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), estadual e municipal. Essa reforma também altera fundamentalmente a lógica do sistema, ao cobrar impostos onde o bem ou serviço é adquirido, e não onde foi produzido.

Projeto gigante

O Serpro é responsável por desenvolver toda a infraestrutura tecnológica para apuração e recolhimento da CBS e do IBS, o que não é pouca coisa. Segundo o gerente do Projeto de Reforma Tributária da empresa, Robson Lima, o novo sistema em desenvolvimento é “o maior projeto tecnológico da história em termos de processamento e armazenamento de dados”. A estimativa é que o volume de transações supere o gigantesco sistema do PIX — que registra mais de 200 milhões de transações por dia —, mas com arquivos muito mais pesados.

O primeiro grupo de empresas convidadas a participarem do programa já tem experiência em testes beta de sistemas tributários oficiais. A Receita Federal espera expandir o número de testadores para 500 até o fim do ano — com o objetivo de incluir empresas de diversos setores —, compartilhando publicamente vídeos e relatórios ao longo do processo.

Para o início de 2026, espera-se que a plataforma tenha desenvolvido um sistema mínimo viável, que estará disponível para todos os contribuintes no que será o ano de teste dos dois novos IVAs. Os ajustes finais serão feitos a tempo, de modo que a CBS entre em operação em 2027 e o IBS seja implantado de maneira escalonada.

Enquanto a CBS, federal, será administrada pela Receita Federal, o IBS será supervisionado pelo Comitê Gestor, composto por representantes estaduais e municipais. No entanto, embora o Serpro e a Receita Federal tenham iniciado os trabalhos na plataforma digital da CBS em 2023, o Comitê do IBS ainda não foi formado.

Ferramenta unificada

Este é um exemplo dos grandes desafios de adaptação com o qual Brasil terá de lidar para pôr em prática o novo sistema tributário: ainda há uma série de detalhes a serem definidos pelo Legislativo, ao mesmo tempo que a tecnologia é desenvolvida e testada.

Embora a expectativa seja de que ambos os impostos espelhem-se em termos de regulamentação, a arrecadação do IBS envolverá um número muito maior de entidades. Um exemplo são os documentos fiscais — a Receita Federal pretende criar um padrão para as faturas, mas alguns municípios já têm os próprios documentos e a adoção obrigatória no modelo federal está prevista para 2033.

“A plataforma da CBS permitirá a sincronização com o IBS, garantindo uma governança unificada do sistema tributário”, pontua o secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy. A ideia é que os usuários possam acessar tudo por meio da principal plataforma digital do governo federal, a Gov.br, em um ambiente compartilhado pela Receita Federal e pelo Comitê Gestor do IBS. 

O portal incluirá, ainda, ferramentas para que as empresas calculem os impostos da CBS e do IBS. “A calculadora ajudará o contribuinte a interpretar a legislação”, explicou Marcos Flores, gerente de Projetos da Receita Federal, durante evento organizado pelo site de notícias jurídicas JOTA.

Durante o preenchimento de notas e documentos fiscais, o portal oferecerá alertas em tempo real sobre potenciais erros e inconsistências, de forma semelhante à plataforma para declaração do Imposto de Renda (IR), agilizando um processo que, muitas vezes, ainda é manual e demorado. “Isso muda a lógica de um sistema em que é arquivado um documento fiscal agora, de acordo com minha interpretação da lei, mas sujeito a supervisão daqui a anos”, detalhou Flores. 

Ao mesmo tempo, os prestadores de serviços que não precisam fornecer notas fiscais no sistema atual terão que começar a fazê-lo, o que aumentará o número de pessoas jurídicas que emitirão esses documentos fiscais. Para incorporar essa expansão, o sistema de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) foi recentemente atualizado para incluir letras, além de números.

Marcelo Almeida, diretor de Relações Governamentais da Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes), cita a mudança no CNPJ — que entrará em vigor integralmente daqui a um ano — como exemplo de uma pequena alteração que exige tempo para ajustes tecnológicos. “Isso afeta todos os sistemas, já que a maioria só lê números”, detalha.

Embora pequenas empresas ou prestadores de serviços individuais possam usar a plataforma digital do governo diretamente, corporações de grande porte dependem de softwares corporativos integrados, que precisarão ser atualizados. “Provavelmente precisaremos desenvolver novos sistemas, pois existem novos paradigmas”, acrescenta Almeida.

À espera da regulamentação

Outros aspectos da reforma aguardam regulamentação, alguns dos quais serão redigidos pelo Comitê Gestor do IBS, que ainda será criado. O Congresso não concluiu a apreciação do Projeto de Lei (PL) que estabelece a estrutura do Conselho Superior do Comitê, com a votação adiada em razão de uma disputa sobre como preencher as 54 cadeiras do grupo.

O PL estabelece que metade dos assentos deve ser indicada pelos 26 Estados e pelo Distrito Federal, e a outra metade pelos mais de 5,5 mil municípios do País. Duas associações nacionais de prefeitos disputam para decidir quem terá o direito de indicar os membros — e administrar uma receita estimada em R$ 1 trilhão após a implementação completa do sistema, além de decidir acerca de disputas tributárias intermunicipais. O Senado espera votar o projeto ainda em julho.

Enquanto isso, uma comissão temporária foi criada, mas apenas com representantes dos Estados. Assim que todo o sistema tributário estiver implementado, o financiamento da comissão virá de uma parcela do IBS. Até 2028, no entanto, essa comissão deve custar aos cofres públicos R$ 3,8 bilhões. Em 2025, a previsão é de que R$ 600 milhões sejam gastos com pessoal e tecnologia — mas, com o atraso e o aperto orçamentário federal, apenas R$ 219 milhões foram concedidos até o momento.

Segundo Almeida, da Abes, o maior receio é que o Comitê recorra a fontes alternativas de receita, como a cobrança pelo acesso à interface das plataformas do novo sistema. “Toda a Reforma Tributária foi pensada sob a premissa de que não haveria custos extras para as empresas”, alerta. Entretanto, Lima, do Serpro, já garantiu publicamente que os aplicativos básicos para que as empresas se adaptem ao sistema serão disponibilizados gratuitamente.

A Abes participa de grupos de trabalho para monitorar todo o processo de adaptação tecnológica e contribuir com ideias, incluindo um grupo dedicado ao sistema de parcelamento da arrecadação, mecanismo pelo qual parte do imposto gerado em uma venda é retida na fonte. Esse é um dos dois novos conceitos que a reforma introduzirá ao sistema tributário brasileiro, juntamente com um mecanismo de cashback, criado para devolver parte dos impostos pagos por famílias de baixa renda.

Tornar o cashback operacional deve ser relativamente fácil, considerando o já robusto cadastro brasileiro, especialmente a base do CadÚnico. Já a retenção na fonte de parte do imposto gerado na venda de produtos e serviços exige ferramentas mais complexas. Por isso, de acordo com Flores, a implementação gradual dessa retenção provavelmente começará só em 2027, inicialmente de forma voluntária e apenas entre transações B2B, aquelas realizadas entre empresas.

No geral, como afirma Almeida, a previsibilidade é fundamental. “Quanto mais próximo da realidade trabalharmos, melhor. É por isso que temos pressa para conhecer os modelos antes de colocar o sistema em produção”, explica. “Se entrarmos em operação e um paradigma mudar, será preciso reverter uma série de etapas já concluídas para corrigi-lo”, acrescenta.

A publicação deste conteúdo é fruto de parceria entre a Revista Problemas Brasileiros e o portal The Brazilian Report. Acesse aqui o material original, em inglês.

The Brazilian Report Débora Faria
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