No primeiro ano de seu atual mandato como presidente, Luiz Inácio Lula da Silva fez a provocativa afirmação de que o Brasil se tornaria “a Arábia Saudita da energia verde e renovável” em até dez anos. No entanto, essa ambição de liderança climática contrasta com a atual estratégia nacional para os combustíveis fósseis.
Além dos grandes planos de expansão da Petrobras na exploração de petróleo, uma nova proposta do governo para o gás natural quase triplicaria a frota de energia a gás existente no País. Na verdade, o Brasil é o quarto maior investidor no desenvolvimento de energia a gás. O governo e a Indústria justificam formalmente a expansão planejada do gás natural no Brasil como necessária para garantir a segurança do sistema elétrico de baixo carbono em território nacional.
Em seu relatório de transparência de 2024, a maior operadora de gás onshore do Brasil, a Eneva, descreveu as usinas termelétricas a gás como fontes de energia “garantidas e gerenciáveis”, com o objetivo de suprir a intermitência da energia hidrelétrica durante períodos de seca.
Entretanto, esse argumento contém uma contradição inevitável: os períodos de seca que causam essas intermitências hidrelétricas são intensificados pelas mudanças climáticas, as quais, por sua vez, são agravadas pela produção e combustão de combustíveis fósseis — como o gás natural. “A resposta imediata que o governo brasileiro e as empresas de energia dão é que estão tendo problemas com a energia hidrelétrica, e que ela não é mais tão confiável. Claro, mudanças climáticas!”, aponta a ambientalista Heffa Schücking, fundadora da ONG alemã Urgewald. “E o que fazem? ‘Ah, vamos construir mais capacidade fóssil’… e vai piorar ainda mais o nosso problema hidrelétrico em longo prazo”, completa.
Juntamente com o Instituto Internacional Arayara no Brasil e outras organizações parceiras na região, a Urgewald lançou um novo relatório mapeando bancos e investidores que financiam projetos de petróleo e gás na América Latina e no Caribe.
Pesquisadores descobriram que o Brasil é responsável por:
42% de todos os gasodutos projetados na região;
65% da própria construção de energia a gás;
72% da capacidade planejada de importação de Gás Natural Liquefeito (GNL).
Nicole Oliveira, diretora-executiva do Arayara, afirma que essa expansão é impulsionada pela oferta de gás natural, e não por uma demanda clara. Ela cita uma conversa que teve com um empreendedor de usinas de energia que comparou o cenário a “ter uma loja de bolsas de luxo e precisar de um shopping para instalá-la”. “É por isso que estão construindo essas usinas, porque há todo esse gás e precisam queimá-lo”, critica Nicole.
Os planos de expansão do gás natural no Brasil são mais um exemplo do quanto o País está preso ao carbono. Projetos de infraestrutura, como gasodutos e terminais de importação, exigem enormes investimentos e são projetados para durar décadas — consolidando uma dependência de longo prazo dos combustíveis fósseis, mesmo que seja apenas como solução para a intermitência hidrelétrica.
O complexo Gás Natural Açu (GNA), no Porto do Açu, em São João da Barra, no Estado do Rio de Janeiro, é o maior parque gerador a gás da América Latina, com capacidade total de 3 gigawatt (GW). A sua usina GNA II entrou em operação em junho, com a promessa de abastecer 14 milhões de residências com eletricidade gerada a partir de combustíveis fósseis. Atualmente, a usina depende de GNL importado e precisa de R$ 1 bilhão para sua conexão à rede elétrica nacional.
Para dar suporte aos planos de expansão da energia a gás no País, serão necessários mais de 3,7 mil quilômetros de novos gasodutos. Um dos projetos mais controversos é o do Gasoduto Brasil Central, que conectaria quatro usinas termelétricas a gás planejadas no Estado de Goiás e no Distrito Federal, atualmente em processo de licenciamento ambiental. Pesquisadores do Arayara estimam que a rede pode afetar cerca de 2 mil hectares do Cerrado e ameaçar as fontes de 70% das bacias hidrográficas nacionais.
O Cerrado abrange quase um quarto do território brasileiro e continua sendo a savana com maior biodiversidade do mundo, com cerca de 250 espécies diferentes de mamíferos. Por estar situado sobre enormes aquíferos subterrâneos e abrigar as nascentes de oito das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras, o bioma é frequentemente apelidado de “caixa d’água do Brasil”, com a Amazônia como um dos vários ecossistemas que dependem dessa água.
Em todo o mundo, o gás natural tem sido aclamado há muito tempo como um “combustível de transição” — uma opção com menor emissão de poluentes para facilitar a transição do carvão e do petróleo para fontes renováveis. A ciência por trás dessa alegação, no entanto, tem sido questionada, pois há indícios de que o vazamento de metano ao longo da cadeia do gás natural pode, na verdade, torná-lo ainda mais sujo do que o carvão.
Para medir o poder dos Gases de Efeito Estufa (GEE) como contribuintes para as mudanças climáticas, foi desenvolvida uma métrica que leva em conta quanto tempo um gás permanece ativo na atmosfera — o Potencial de Aquecimento Global (PAG). Uma tonelada de metano, por exemplo, tem uma PAG de aproximadamente 25 toneladas de CO2, ou 86 toneladas em um período de 20 anos.
Como o gás natural normalmente contém até 90% de metano, o vazamento desse gás potente ao longo dos processos de extração, liquefação e transporte geralmente faz com que a pegada de carbono do GNL seja maior que a do carvão.
Um famoso artigo, publicado em 2024, do professor de Ecologia Robert Howarth, da norte-americana Universidade Cornell, mostrou que o GNL produzido a partir do gás de xisto tem a maior emissão de GEE que qualquer outro combustível fóssil, concluindo que “não é o caminho a seguir para nenhum plano energético sensato” e que é “apenas uma maneira cara, com alto consumo de energia e poluente, de transportar gás”.
O estudo da Urgewald observou que 92% do financiamento bancário para expansão de combustíveis fósseis na América Latina e no Caribe vêm de fora da região, com Santander, JPMorgan Chase e Citigroup liderando, com quase US$ 26 bilhões em financiamento de combustíveis fósseis entre 2022 e 2024. Enquanto isso, nove dos dez maiores investidores institucionais na expansão de petróleo e gás são dos Estados Unidos ou Canadá.
Contudo, o estudo também mostra que, considerando apenas a expansão da energia a gás no Brasil, o financiamento é quase totalmente doméstico. No caso da líder do setor, a Eneva, o seu financiamento vem em grande parte dos grandes bancos privados brasileiros, Itaú e Bradesco, bem como do banco de investimentos BTG Pactual, que também detém uma participação significativa na empresa. Isso, observa Heffa, da Urgewald, pode tornar as campanhas de pressão mais complexas. “É mais difícil fazer com que as instituições financeiras se movam em áreas nas quais têm grandes clientes em seus próprios países. É como a RWE na Alemanha ou a Total Energies na França”, observa.
Para organizações como a Urgewald e o Instituto Arayara, o Brasil está sacrificando seus compromissos como líder climático — bem como o futuro de biomas sensíveis como a Amazônia e o Cerrado — por um aumento do uso de gás fóssil impulsionado mais pelo fornecimento comercial do que por qualquer necessidade energética real.
Em vez de persistir no gás natural para cobrir as intermitências influenciadas pelas mudanças climáticas em fontes renováveis, as ONGs recomendam pesquisa e investimento em energia hidrelétrica de armazenamento bombeado, método que já foi comprovado como viável em algumas grandes usinas na China e nos Estados Unidos. “A tecnologia basicamente transformaria usinas hidrelétricas em grandes baterias”, explica Nicole, do Instituto Arayara. “Permitiria armazenar água para uso em períodos de seca. Exigiria mudanças técnicas e regulatórias, mas é definitivamente factível. Em vez disso, vemos apenas esse desejo constante do governo de desenvolver o mercado de gás natural do Brasil”, ressalta.