A cem dias da 30ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP30) da Organização das Nações Unidas (ONU) — maior conferência climática do planeta, que será realizada no coração da Amazônia —, o Brasil vive um paradoxo que pode definir sua credibilidade internacional: expandir a exploração de petróleo em uma das regiões mais sensíveis do planeta, enquanto promete liderar a transição para uma economia de baixo carbono.
A chamada Margem Equatorial — faixa litorânea entre o Amapá e o Rio Grande do Norte — é apresentada pela Indústria como uma fronteira estratégica para o crescimento. No entanto, especialistas em clima, economia e direito alertam que insistir no petróleo, em plena crise climática global, é uma escolha que pode custar caro para o meio ambiente, a sociedade e o futuro da própria economia brasileira.
Empresas petrolíferas e governos locais defendem que o País precisa aproveitar suas reservas para garantir segurança energética, soberania e recursos para o desenvolvimento socioeconômico. “Coitada da nação que deixa enterradas em seu subsolo riquezas inexploradas”, afirmou Roberto Ardenghy, presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), durante o evento Amazon Energy 2025, em Belém, no Pará, em junho. “Vamos mostrar o petróleo com a pegada das responsabilidades social e ambiental”, argumentou.
Em contrapartida, vozes como a de Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, chamam a atenção para um conflito estrutural. “A foz do Rio Amazonas virou símbolo de um impasse global: de um lado, o limite de emissões que o planeta ainda pode suportar; de outro, a tentativa de prolongar a vida útil de uma indústria que todos sabemos que precisa declinar. Não há espaço no orçamento de carbono para novas fronteiras petrolíferas, ainda menos numa região ambientalmente sensível como a Amazônia”, enfatiza.
O Brasil, segundo dados do governo, deve se tornar o quarto maior produtor de petróleo do mundo até 2030. Essa expansão, no entanto, caminha na contramão das metas assumidas pelo País de atingir a neutralidade climática até 2050. “O verdadeiro problema está no centro do planejamento energético, que hoje segue descolado da meta de neutralidade”, opina Natalie, que também integra o painel de acreditação internacional do Fundo Verde do Clima.
Gustavo Pinheiro, associado sênior do E3G, um think tank sobre mudanças climáticas, faz coro. “Parece que explorar a margem equatorial em 2025–2030 seria como investir na produção de feno na década de 1920, quando o mundo estava transicionando dos cavalos para veículos a combustão”, argumenta.
Pinheiro critica o fato de que nem sequer há confirmação de que exista petróleo economicamente viável na região. “Entre o início da produção e o retorno do capital investido, passam-se dez anos. Isto é, estaremos em 2035, se tudo der certo. Até lá, como ficará a transição energética no mundo?”, pergunta. Ele avalia que o debate vem sendo reduzido a uma falsa dicotomia entre desenvolvimento e meio ambiente, sem abordar a real questão. “Faz sentido econômico apostar em petróleo enquanto o mundo corre para zerar emissões?”,questiona.
Segundo os defensores da exploração, como o Ministério de Minas e Energia (MME), a perfuração aconteceria em alto-mar, a 510 quilômetros da foz do Rio Amazonas, longe de corais ou vegetação costeira. Carlos Agenor Onofre Cabral, diretor do Departamento de Política de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural, do MME, argumenta que “o Brasil tem um dos melhores sistemas de segurança operacional do mundo para a exploração de petróleo”.
A publicação Por que não é uma boa ideia explorar petróleo na Margem Equatorial, do Instituto Mapinguari, porém, contesta essa visão tecnocrática, denunciando a ausência de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) — exigência prevista em lei antes de leilões ou perfurações — e a falta de consulta adequada às comunidades costeiras, especialmente no Amapá. “As comunidades buscam o cumprimento da Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], da qual o Brasil é signatário”, reforça Natalie, do Talanoa.
A Defensoria Pública da União chegou a acionar judicialmente a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), denunciando as faltas de transparência e participação no processo. A Federação Única dos Petroleiros (FUP) também ingressou com uma ação judicial contestando o leilão de blocos na foz do Rio Amazonas, apontando, dentre outros fatores, ausência de consulta pública adequada, falhas no processo de licenciamento e desrespeito à participação social prevista em normas nacionais e internacionais.
O argumento de que os recursos do petróleo poderiam financiar a transição energética também é questionado. “Se essa promessa fosse verdadeira, o Brasil já seria referência em desenvolvimento local e transição energética. Somos o nono maior produtor de petróleo do mundo. O que temos a mostrar? Municípios produtores com IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] abaixo da média nacional, dependência crônica de royalties e infraestrutura social precária. Isso, infelizmente, é dependência mascarada de oportunidade”, observa Natalie.
Pinheiro, do E3G, embasa a crítica com números. “O setor de petróleo e gás recebe, por ano, mais de R$ 80 bilhões em subsídios públicos — mais do que os royalties gerados. Mesmo com lucros recordes desde a guerra na Ucrânia, os investimentos em renováveis continuam irrisórios”, pontua. Ele questiona a própria Petrobras. “Por que não opta por distribuir menos dividendos e investir mais em energia limpa? O mundo está fazendo a transição energética agora.”
A Petrobras anunciou que 12% de seu plano de negócios 2025–2029 será destinado à transição energética, mas a maioria dos recursos mira a redução de emissões operacionais (escopos 1 e 2), e não aquelas geradas pelo uso dos produtos que vende (escopo 3). “É como maquiar o produto, que segue sendo fóssil”, resume Pinheiro.
O setor petrolífero, por sua vez, destaca seus esforços em inovação e descarbonização. Segundo o IBP, o Brasil produz petróleo com uma intensidade de carbono muito inferior à média global: 10 quilos de dióxido de carbono (CO₂) por barril, frente a 20 quilos no cenário mundial. Há, ainda, investimentos da Petrobras em restauração florestal e projetos sociais, como o Programa Petrobras Socioambiental e o Fundo de Bioeconomia em parceria com o Banco do Brasil.
A diretora-executiva de gás natural do IBP, Sylvie D’Apote, acredita que a exploração pode trazer benefícios para a região. “Quando se introduz riqueza num determinado território, o desenvolvimento socioeconômico automaticamente segue na direção de diminuir os impactos ambientais”, ressalta. Mas, segundo Natalie, a lógica repete padrões já conhecidos na Amazônia. “Madeira, ouro, grandes obras — a entrada ruidosa, uma curva de crescimento rápida e, depois, o abandono. Estamos diante do risco de mais um ciclo de boom e colapso, agora turbinado por riscos climáticos em escala planetária.”
A Carta de Belém, documento final do Amazon Energy 2025, formalizou o pedido para a liberação da exploração na Margem Equatorial e de outros projetos energéticos na Amazônia. As entidades signatárias defendem “práticas robustas de mitigação ambiental, descarbonização e inclusão social”, além de mais celeridade nos licenciamentos e investimento em infraestrutura logística. Entretanto, para ambientalistas e parte da sociedade civil, a ausência de consulta, a fragilidade dos estudos e o foco no curto prazo tornam a proposta perigosa.
O que está em jogo, para os críticos, não é apenas um projeto, mas o modelo de desenvolvimento que o País deseja. “A transição energética no Brasil ainda não é estruturante. É preciso parar de tratar petróleo como se fosse infraestrutura de base para o futuro. Ele é, por definição, um ativo em declínio. Insistir nele significa empurrar o País para um beco sem saída”, conclui Natalie, do Talanoa.
A COP30 deverá ser o grande palco desse confronto. Caberá ao Brasil mostrar se será líder na corrida pela economia de baixo carbono ou se continuará refém do ouro negro, mesmo que ele esteja enterrado no fundo do mar e na lógica do passado.