Mais que tijolo e cimento

05 de junho de 2025
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O déficit habitacional é um fenômeno de dimensões globais. O Banco Mundial estima que, ainda em 2025, 1,6 bilhão de pessoas serão afetadas pela escassez de moradias. “Denominador comum hoje em dia, a crise da habitação afeta praticamente todos os países do planeta”, afirma Anacláudia Rossbach, diretora-executiva do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat). As soluções para a crise habitacional, no entanto, vão muito além da construção de casas. “Ainda estamos muito limitados à provisão de unidades habitacionais, o que não é uma solução sustentável em longo prazo”, opina. Segundo a especialista, é preciso investir em planejamento urbano.

Confira abaixo os principais trechos da entrevista. Você também pode assistir a íntegra, em vídeo, no CANAL UM BRASIL. Clique aqui.

O que você considera mais urgente quando o tema é a vida nas cidades?

A questão urbana está ficando cada vez mais complexa. E, no Brasil, no Sul Global, vemos um acúmulo de complexidades. Temos temas novos, como a exposição das cidades às mudanças climáticas, com fenômenos como ilhas de calor e inundações. Nossas cidades estão ficando mais vulneráveis, o que está mais visível no processo da mudança climática. Além disso, carregamos problemas crônicos, que afetam todos os cidadãos, como a qualidade de vida, o trânsito, a qualidade do ar, a violência, a pobreza e a segregação urbana. Vivemos em territórios segregados, onde os pobres vivem em uma parte da cidade e os ricos, em outra. Somam-se os desafios. Agora, quero trazer um destaque, que é a crise da habitação, um denominador comum que atinge praticamente todos os países do planeta, embora com características e dimensões diferenciadas. Temos as pessoas em situação de rua, os refugiados, os grupos internos que precisam se movimentar de uma região para outra no mesmo país. Temos as novas formas de moradia, o envelhecimento, os novos hábitos da juventude — e, no caso do Brasil, a demanda por áreas para populações indígenas e quilombolas, além da grande lacuna de capacidade de pagamento: o que já acontecia no Brasil, na América Latina, ocorre no mundo, em grande escala. As pessoas não conseguem comprar uma casa porque a diferença entre o preço e a renda é muito grande. Os países têm capacidade fiscal limitada para oferecer subsídio e nem sempre o sistema financeiro está preparado para atender a essas necessidades. A crise da habitação é um elemento central quando falamos dos desafios das cidades brasileiras, porque a segurança, a violência, a exposição, a vulnerabilidade, a pobreza, tudo gira em torno da habitação. Como vamos superar as questões estruturais se as pessoas não têm casa? Como vamos melhorar a resiliência das comunidades sem trabalhar na forma como as pessoas moram?

Você afirma que as políticas habitacionais no Brasil e na América Latina são obsoletas. Do que elas precisariam dar conta, considerando os desafios contemporâneos?

São obsoletas porque ainda estamos limitados à provisão de casas e a pensar nelas isoladamente, o que acaba, às vezes, gerando soluções imediatas e emergenciais, que são necessárias, mas não sustentáveis quando pensamos no meio ambiente ou nas questões sociais. Existem alguns programas de financiamento e subsídio de habitação — o Minha Casa, Minha Vida é um exemplo —, mas são limitados. Primeiro, não se chega à escala necessária em todos os países. Segundo, não conseguimos ainda trabalhar a localização desses empreendimentos e a inserção urbana nas cidades. A expansão das cidades ainda se dá de uma maneira desorganizada e informal, inclusive com relação à classe alta. Não quero culpar a habitação social e popular pela expansão urbana desenfreada — quero chamar a atenção para o fato de que tentamos resolver o problema com foco em uma necessidade emergencial, sem olhar a cidade como um todo. É preciso limitar o avanço urbano, dos pontos de vista do planejamento e das inserções social e econômica — e associar esses programas de moradia às possibilidades de desenvolvimento econômico, de geração de emprego e renda, às oportunidades sociais, culturais e de lazer, tudo o que as pessoas precisam para se desenvolver como seres humanos. No entanto, para essa parte social, o dinheiro não dá, não chega. Não conseguimos montar equipes para trabalhar com as comunidades em processos de participação realmente profundos, nos quais possamos também fortalecer o capital social das comunidades. É necessário pensar a política habitacional como algo central para a cidade, que vai orientar o seu crescimento, o seu desenvolvimento, e fortalecer essas comunidades. As atuais políticas também são obsoletas, porque ainda não conseguimos olhar de fato para os nossos novos hábitos e as nossas questões culturais. Como vão viver os jovens daqui a alguns anos? O uso do carro, por exemplo, já não é mais tão central. Então, como vamos desonerar o transporte público para que esse jovem possa ter uma inserção no mercado de trabalho e movimentar-se na cidade de uma forma mais sustentável? O envelhecimento da população, a questão migratória… Há também muitos espaços ociosos nas cidades, edifícios que poderiam ser reciclados, mas há muitas barreiras para isso. Vivemos dilemas e complexidades muito profundos, e o programa habitacional ainda está na produção de casinhas. Precisamos fazer com que a política habitacional enxergue e incorpore essa complexidade, tanto da cidade como da sociedade, aproveitando as oportunidades que estão disponíveis.

Como avançar para a reutilização de territórios e edifícios ociosos?

Diante do desafio climático, precisamos realmente maximizar a utilização do ambiente construído. Isso é importante não só por causa das emissões das novas construções, mas também pela ocupação do solo, que é um elemento fundamental ao se pensar em sustentabilidade. Um aspecto é olhar os assentamentos precários, as favelas, e ter estratégias fortes de investimento nesses territórios. No Brasil, tivemos o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] de urbanização de favelas, lançado em 2007, que viveu até 2014. Foi um programa de larga escala direcionado a áreas metropolitanas de urbanização integral de assentamentos precários, com melhoria de infraestrutura e incorporação de equipamentos sociais. Além do PAC, houve muitos outros, como o Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, e o Programa Nossa Guarapiranga, em São Paulo, que foi retomado. Já temos o know-how, é preciso continuar fazendo. Por outro lado, temos os espaços ociosos, principalmente nas áreas centrais das cidades. Existem mecanismos, tanto para disponibilizar o patrimônio público como o patrimônio privado, para promover habitação social em áreas centrais. Reciclar esses imóveis, do ponto de vista técnico, não é fácil. Nossos produtos financeiros não estão orientados para isso, porque nunca se sabe o custo e o prazo final de uma reforma. Não é fácil, mas é possível. Essa trajetória está se iniciando no mundo inteiro. Um terceiro aspecto é como otimizar os terrenos vazios em toda a cidade. Nesse caso, um exemplo importante no Brasil são as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). É um instrumento previsto no Estatuto da Cidade, uma legislação de 2001 que oferece aos municípios esse instrumento de planejamento urbano. As cidades têm utilizado muito esse instrumento para demarcar as áreas de favelas e assentamentos precários para acelerar o processo de urbanização com parâmetros diferenciados que têm sido muito úteis.

Como você vê a aplicabilidade do conceito de cidade de 15 minutos (que propõe que se deve chegar nesse tempo aos locais cotidianos a pé ou de bicicleta) no Sul Global, com uma realidade tão diferente das capitais do Norte?

Bogotá encontrou algo intermediário: a cidade de 30 minutos. É muito difícil, nas nossas cidades, com a infraestrutura que temos, chegar em 15 minutos. Talvez 30 minutos seja algo viável. Mas o importante é não pensar que a nossa vida vai estar confinada num território da cidade. E não deve ser assim, porque precisamos integrar e ter o direito de usufruir de toda a metrópole. Queremos superar a segregação. Também é importante ter serviços acessíveis, principalmente para as mulheres. Gosto muito do modelo das quadras de cuidado de Bogotá, que oferecem, numa distância curta, uma série de serviços para mulheres, idosos e crianças. E a mulher pode reduzir a carga de cuidados para estudar, trabalhar e desenvolver-se. Ter essa infraestrutura disponível em 15 ou 30 minutos é muito importante, porque cria opções econômicas numa escala menor do território e oferece várias situações de possibilidade de emprego, aumentando as oportunidades nos diferentes territórios da cidade, diluindo o conceito de centralidades únicas. Talvez seja necessário tropicalizar esse conceito de cidade de 15 minutos, pensar em uma quantidade de minutos adequada, mas não em uma quantidade que nos confine, mas nos libere para usufruir a cidade e promover o desenvolvimento pessoal.

ESTA ENTREVISTA FAZ PARTE DA EDIÇÃO #486 (MAI/JUN) DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.

entrevista Vinícius Mendes | edição de texto Dimalice Nunes divulgação
entrevista Vinícius Mendes | edição de texto Dimalice Nunes divulgação