A mazela dos sem-lar

19 de maio de 2025

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Por que uma pessoa vai viver na rua? A pergunta ainda intriga um grupo imenso de pesquisadores e pesquisadoras que se debruça sobre a situação daqueles que não têm casa. As respostas variam: vão desde aspectos puramente econômicos — quando a renda é pouca diante do alto custo da moradia, por exemplo —, até fatores que, embora individuais, têm raízes na vida coletiva, como a explosão de casos de sofrimento mental, com mais intensidade nas metrópoles. Há também as vítimas desamparadas de abusos domésticos, que encontram nas ruas, contraditoriamente, um lugar mais seguro para viver.

“Quando conversamos com uma pessoa nessa situação, é muito difícil que ela esteja ali por apenas um desses fatores”, explica Marco Antônio Natalino, sociólogo que produziu o último grande estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o tema, ainda em 2016. “A tendência é que haja uma conjunção, às vezes bem complexa, desses motivos”, continua. No entanto, ainda que reforce o perfil multifatorial, a pesquisa aponta pelo menos três grandes eixos: econômico — preço dos aluguéis, pobreza, desemprego etc. —, familiar (ligado à ruptura dos vínculos) e saúde mental.

Além dessas causas, fato é que o fenômeno explodiu no Brasil. Em 2024, de acordo com o mais recente relatório do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), havia cerca de 328 mil pessoas sem moradia no território nacional. O número foi quase sete vezes maior do que o registrado nove anos antes pela mesma entidade. Em 2015, eram 52,4 mil.

São Paulo na rua

A situação mais grave, obviamente, é na capital paulista. Não à toa, existe um conflito aberto sobre a dimensão do problema entre a administração da metrópole e entidades da sociedade civil que trabalham com a população em situação de rua. De um lado, o Observatório da UFMG calcula que, em janeiro de 2025, mais de 93,3 mil pessoas estavam vivendo ao relento em São Paulo. A prefeitura, por sua vez, afia-se no seu último censo, realizado em 2022, quando contou 31,8 mil cidadãos vivendo nas ruas da cidade.

A discordância é de ordem metodológica: enquanto o OBPopRua usa dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), a partir dos registros do Cadastro Único (CadÚnico), produzidos, por sua vez, com base nas declarações dos próprios cidadãos — inclusive para admissão em programas sociais federais —, a prefeitura se fundamenta em entrevistas realizadas por uma equipe dedicada às pessoas em situação de rua. O próximo ciclo será, inclusive, neste ano. “É um problema não só de ordem científica, mas também política, porque os dados — para mais ou para menos — têm consequências políticas”, afirma Maria Laura Gomes, pesquisadora no Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da Universidade de São Paulo (USP), que finalizou recentemente uma dissertação de mestrado sobre a população de rua em São Paulo, na mesma universidade.
Considerados apenas os números do OBPopRua, o tamanho da população de rua na capital paulista subiu impressionantes 401% em uma década — de 18,6 mil pessoas, em 2015, para 93,3 mil em janeiro de 2025. Mas isso não é exclusividade paulistana: no Rio de Janeiro, esse número, que não passava dos três dígitos (994) em 2015, atingiu 8 mil ainda em 2022, de acordo com os dados oficiais. Em Recife, capital de Pernambuco, o salto foi de 800%. A capilaridade do fenômeno também surpreende, segundo um estudo do CEM ao qual a Revista Problemas Brasileiros (PB) teve acesso. Dez anos atrás, cerca de 1,2 mil cidades do País registravam pessoas morando nas ruas. Em porcentagem, eram 22% dos municípios brasileiros. Em 2023, porém, essa parcela já havia subido para 42%.

Cara cidade

Os estudos do OBPopRua, do Ipea, de pesquisas acadêmicas e as percepções dos movimentos sociais revelam, em comum, o perfil de quem vive na rua: homens negros na casa dos 40 anos. Todos em situação de extrema pobreza — que se intensifica quando vivem nas ruas.

Ao se separarem os diferentes eixos que sustentam a explosão dos números, uma série de explicações vão surgindo. Natalino afirma que os efeitos da pandemia de covid-19 ainda estão presentes nesses dados. A queda drástica na renda média dos brasileiros — sobretudo em 2021, quando ficou abaixo de R$ 2,7 mil —, somada à necessidade de isolamento social por conta da crescente curva de contaminação, fez com que muita gente perdesse renda e, então, ficasse sem condições de pagar o aluguel. Ali, não sobrou alternativa além de viver nas ruas. Há, ainda, um outro aspecto estrutural, que se liga a esse primeiro de alguma forma: a alta do custo de vida nas regiões que Natalino chama de “centros de dinamismo econômico”, como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. “Esses lugares concentram riqueza e, por isso, sempre atraem muita gente”, contextualiza. Segundo o sociólogo, a alta expectativa por oportunidades econômicas tem como resultado a formação de periferias, pois as pessoas não têm condição de viver perto das atividades produtivas que exercem. “Mas algumas delas decidem ficar perto das oportunidades para baratear custos, e vão viver em estacionamentos e abrigos, fazendo a vida no meio do centro dinâmico”, continua.

Segundo cálculos da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), o custo de vida na Região Metropolitana de São Paulo cresceu 5% em 2024. Essa variação, porém, afeta as classes sociais de maneira distinta: enquanto os mais pobres (Classe E) viram seus gastos cotidianos subirem 5,1%, a camada mais rica (Classe A) teve um incremento de 4,7%. Contudo, as áreas de dinamismo econômico não são sinônimo de centros de riqueza, como a zona sul do Rio, a região da Avenida Faria Lima, em São Paulo, ou as margens da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, capital mineira. Essas áreas concentram-se em locais mais movimentados — que, nessas capitais, costumam ser os centros históricos. “É ali que quem está em situação de rua pode conseguir um pequeno emprego, um ‘bico’, e pode pegar alimentos na xepa das feiras, coletar material reciclável, vender algum produto. E lá vão criando morada”, detalha Natalino.

Essa é uma explicação comum, por exemplo, para o crescimento de pessoas nessa situação em Brasília, Distrito Federal. “Há cinco anos, não existia ninguém nessa condição aqui”, conta à PB o motorista Ricardo Oliveira, baiano que vive na capital federal desde os anos 1980. Enquanto a reportagem cruzava a cidade com ele, era possível ver famílias inteiras em viadutos e até perto da Esplanada dos Ministérios, centro do poder nacional. De acordo com o OBPopRua, Brasília saiu de 2024 com 8,6 mil pessoas em situação de rua, um salto de 8% na comparação com o ano anterior. Em 2015, eram 755. Além disso, há outra questão que os analistas chamam de flutuação. Ao contrário do senso comum, a população que está na rua não é permanente, ela tende a flutuar entre moradias mais ou menos irregulares (em períodos melhores) e a própria rua. “A pessoa está ali, embaixo do viaduto. Consegue um emprego e, com o salário que ganha, vai morar em uma casa. Mas ela continua sujeita a perder aquele trabalho e, quando isso acontece, sem opção, volta para a rua”, destaca Maria Laura, do CEM. “Acontece muito. E essa fragilidade dos vínculos trabalhistas impede não só a autonomia financeira, mas também a cidadã”, reforça.

O peso do custo de vida

O Brasil registra, atualmente, as menores taxas de desemprego da sua história, com indicadores abaixo dos 7% há quase um ano. Mais emprego também significa maior renda média: R$ 3,2 mil, no fim de 2024, segundo o Ipea. Pela lógica, não era para ter mais gente na rua, mas o contrário. “A economia está excelente, é verdade, mas não é todo mundo que acessa essa melhora”, explica o presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo (MEPSRSP), Robson Mendonça. “Até o ovo, que era um jeito de o pobre comer alguma coisa além de arroz e feijão, agora está o olho da cara”, continua, citando a inflação que chegou a beirar os 40% para esse item no início de 2025. Segundo números da FecomercioSP, a alimentação ficou 7,4% mais cara na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) no ano passado, número que sobe para 8,2% quando considerada apenas a Classe E.

Outro ponto de pressão vem do custo da moradia. “Esse gasto ainda não é bem mensurado nos estudos sobre orçamento doméstico das classes mais baixas”, explica a economista Laura Müller Machado, professora no Insper, que foi secretária de Desenvolvimento Social do governo paulista em 2022. “Boa parte da renda das pessoas vai para o aluguel — que está ficando cada vez mais caro. Algumas famílias simplesmente não conseguem pagar. É um desafio até para programas sociais como o Bolsa Família”, complementa. Uma rápida olhada para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que indexa os preços dos aluguéis no País, permite verificar que eles subiram mais de 4% apenas em 2024, após uma alta de 3,7% no ano anterior.

Por isso, a discussão deságua, inevitavelmente, na enorme quantidade de imóveis ociosos nas metrópoles brasileiras. “De um lado, a política do housing first [moradia primeiro, criada nos Países Baixos, em 2006] é uma resposta efetiva”, opina Maria Laura, do CEM, citando os exemplos do programa Moradia Cidadã, criado pelo governo federal no ano passado, e do Reencontro, da Prefeitura de São Paulo, que começou em 2022. “Mas é evidente que o problema não existe por causa de um déficit habitacional”, completa. Ainda em 2022, o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que somente a Cidade de São Paulo tem cerca de 590 mil imóveis vazios. Considerando a contagem da própria prefeitura, o número é 20 vezes maior do que a população de rua do município. “E há uma absoluta inação no campo da política habitacional”, ressaltou a urbanista Raquel Rolnik, que leciona na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da USP, ao Jornal da USP, quando esses dados foram publicados. Segundo a urbanista, a contradição é que isso aconteceu em paralelo a uma explosão do mercado imobiliário paulistano. “Essa circunstância representou um aumento de preços dos terrenos e, portanto, uma dificuldade ainda maior de pagamento do aluguel por parte das famílias de menor renda”, completou, à época.

Laços rompidos

Ex-morador de rua na capital paulista, Mendonça, do MEPSRSP, enfatiza como o declínio econômico costuma ter, como consequência inequívoca, a ruptura das famílias — corroborando um dos eixos do estudo de Natalino, do Ipea. “Quando uma pessoa perde o emprego e não consegue mais pagar as contas, começam os conflitos em casa, o que acaba levando essa pessoa para a rua”, observa. “Posso afirmar que todo mundo que está nessa condição, hoje, passou por algum tipo de conflito familiar. É geral”, reforça. As tensões domésticas têm origens distintas, indicam as pesquisas. Às vezes, surgem quando um membro da família torna-se dependente químico e, então, retira-se para preservar os demais familiares ou é expulso por eles. Em outros contextos, diante da falta de horizonte — como a perda de emprego —, emerge o sofrimento mental e, assim, a rua converte-se em um escape, tanto dos custos quanto das pressões sociais dentro de casa. Especialistas ouvidos pela PB concordam que, quando isso acontece, a tendência é que o quadro piore e se torne de difícil reversão pois, quando esse indivíduo entra em contato com o “universo das ruas”, como chama Mendonça, há poucas condições de regresso ao convívio familiar.

O movimento encabeçado pelo presidente do MEPSRSP, que costumava atender em torno de 2 mil pessoas em situação de rua, por dia, no centro de São Paulo, viu esse número dobrar no último ano. É nessa região da cidade que quem não tem onde morar consegue acessar programas sociais do governo e meios de higiene pessoal, além de comida e uma cama para passar a noite. “Não estamos mais conseguindo receber todo mundo, falta estrutura. E cada vez mais gente chegando”, desabafa. Nos últimos meses, o Movimento também tem denunciado ao Poder Público a dificuldade que as pessoas em situação de rua enfrentam para registrarem-se no CadÚnico, atualmente o maior mecanismo de mapeamento de vulnerabilidade social do Brasil, administrado pelo MDS. Segundo a entidade, há gargalos que vão desde a extensão da ficha de cadastro — que faz com que muita gente desista de preenchê-la até o fim — até as filas nas portas de dispositivos públicos como os Centros de Referência de Assistência Social (Cras). “Já estão até vendendo lugar na fila. E mesmo comprando, a pessoa não consegue ser atendida no mesmo dia. Faltam mais centros, mais vagas e gente para atender”, enumera Mendonça. A prefeitura informou que São Paulo conta com 54 Cras distribuídos em todas as regiões, e que, em média, são atendidas cerca de 230 mil pessoas por ano.

O que pode ser feito?

“Tampouco há uma resposta perfeita”, reage Natalino. Segundo o pesquisador, no âmbito econômico, a saída passa por oferta de emprego e também por melhores políticas habitacionais. “O Brasil tem o forte mito da casa própria, mas a gente precisa de aluguel social”, defende. “Muitas vezes, a família depende de uma ajuda, via subsídio, para conseguir voltar a ter um lar. É assim que ela pode se reerguer nos outros eixos. Este é um buraco do nosso sistema de proteção social”, argumenta. Maria Laura, do CEM, concorda. “Nós ainda olhamos para o atendimento à população de rua muito pelo prisma da assistência social e do acolhimento, que são fundamentais, mas, sozinhos, não resolvem o problema. O housing first é relevante, porque essas pessoas não têm acesso a moradias. O que fazer? Viabilizá-las”, sugere.

Quanto às relações familiares, o espaço de ação do Poder Público tende a ser mais limitado, embora existam iniciativas elogiadas. Uma delas é o próprio programa Reencontro, da prefeitura paulistana, que já conta com dez unidades. As vilas são administradas por entidades sociais — de instituições religiosas ao próprio MEPSRSP. Mendonça pontua que o sofrimento mental intensifica-se quando as pessoas afastam-se da família. “Sem aquela estrutura, ficam só as mazelas da rua. É muito difícil manter-se são. O Cras não substitui a família”, conclui. No entanto, para Maria Laura, é relevante pensar em relações sociais que não estejam na alçada familiar e que, às vezes, contem até mais para essa população do que o lar perdido. “Muitas etnografias mostram como a rua também é um espaço de vínculos relevantes. Há fragilidades, mas também há conexões fortes”, avalia. De acordo com Natalino, do Ipea, há espaço para o Estado agir, sobretudo nos casos de depressão. Dados do CEM mostram que, de cada 100 atendimentos de saúde à população em situação de rua em São Paulo, 9,9% são por questões de saúde mental. Em 2017, essa proporção era de apenas 2,6%. Esses números contabilizam apenas os dados dos centros de acolhida. Em Belo Horizonte, a variação foi de 9% para 14%.

A ação estatal também pode conduzir à criação de abrigos temporários e à oferta de apoios jurídico e psicológico a quem sofre violência doméstica e precisa sair de casa, dizem as fontes consultadas pela PB. “Como fazer uma política, de fato, intersetorial?”, questiona Maria Laura. “Mais do que isso, como implementá-la não só pela letra da lei, mas na prática? O desafio não é só pensar na moradia, mas em toda a articulação que precisa ser feita para que a pessoa permaneça na nova moradia”, defende a pesquisadora. 

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #486 (MAI/JUN) DA REVISTA PB. CONFIRA A ÍNTEGRA, DISPONÍVEL AQUI.

Vinícius Mendes
Débora Faria
Vinícius Mendes
Débora Faria