Há algum tempo, cientistas brasileiros de várias áreas do conhecimento têm se dedicado a tentar compreender a cracolândia — nome popular para uma região no centro da Cidade de São Paulo onde se concentra uma cena aberta de uso de crack, marcada pela presença de pessoas em situação de rua — e a pensar em formas de lidar com a questão de maneira efetiva. Dentre as pesquisas, há um ponto comum que se destaca: as internações dos usuários de crack são recorrentes e limitadas e não funcionam do ponto de vista das políticas públicas.
Uma das pesquisas mais recentes a se debruçar sobre o tema, publicada no fim de 2024 pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB/FGV), pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM/USP) e pelo Cóccix, grupo de estudos (in)disciplinares do corpo e do território, viu que a maioria dos moradores da cracolândia da região central da capital paulista tem longa trajetória de internações e se desloca repetidamente pela região.
Os pesquisadores ouviram 90 pessoas da região e mostraram que mais de 90% dos entrevistados usam crack (os demais relatam uso de bebidas alcoólicas) e que 69% dormem efetivamente nas ruas, embora parte se abrigue, de forma intermitente, em hotéis ou pensões do entorno. Os resultados estão no relatório “A ‘Cracolândia’ pelos usuários: como as pessoas que vivem nas ruas do território percebem as políticas públicas”. A pesquisa se soma a um conjunto de evidências e publicações acadêmicas sobre aquela região, apontando que o cenário era, permanece e continuará desafiador.
“Os dados mostram uma relevante aderência das pessoas às internações, contrariando um discurso geral que diz que elas não querem se tratar”, diz Amanda Gabriela Amparo, do Cóccix. A maioria (78%) tem entre 30 e 49 anos de idade e 81% se identifica como negra ou parda, evidenciando o componente de desigualdade racial. Outro dado é que 7 em cada 10 entrevistados já passaram por pelo menos uma internação, e há casos em que alguns chegaram a se internar mais de 30 vezes. Dois terços dos entrevistados disseram realizar algum tipo de atividade para gerar renda, principalmente coleta de recicláveis, comércio informal ou “bicos” esporádicos.
Essa informações dialogam com um levantamento anterior realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e publicado em 2022 no Jornal Brasileiro de Psiquiatria: 46,9% das pessoas que vivem no chamado “fluxo” relataram não ter moradia fixa havia anos, enquanto 50% tinham moradia instável e 60,4% estavam desempregadas. Ademais, 87,8% desse público apresentam transtorno por uso de álcool associado ao consumo de crack e mais da metade já apresentou sintomas psiquiátricos significativos — reforçando o retrato de um contexto de pobreza extrema, vulnerabilidade social e barreiras de acesso a serviços de saúde.
Um grande problema, segundo o relatório e outras pesquisas, é a recorrência e as limitações de internações dos usuários. Muitas vezes, não incluem suporte pós-alta nem acompanhamento social duradouro. Também há denúncias de condições precárias: faltam abordagens focadas em redução de danos e, frequentemente, a abstinência é forçada e se dá em ambientes comparados pelos próprios usuários a “prisões”. Com isso, após dias ou semanas, a maior parte retorna às ruas e ao uso de drogas.
Programas inovadores de redução de danos e geração de renda como o De Braços Abertos (2014–2017) foram descontinuados, deixando lacunas nesse sentido, a despeito dos problemas. O projeto oferecia moradia provisória e oportunidades de trabalho, em vez de focar exclusivamente em internações e abstinência.
Segundo uma análise publicada nos Cadernos de Saúde Pública em 2020, feita por pesquisadores das universidades federais de São Paulo e do Rio Grande do Sul, um dos problemas do programa era a convivência compulsória com o crime organizado, que, de certa forma, enfraquecia as ações. De positivo, houve melhora nos indicadores de saúdes física e mental e na retomada de vínculos familiares. “O esfacelamento do De Braços Abertos mostrou, num quadro comparativo com as situações anteriores e o contexto atual, que o programa deixou uma importante herança no que se refere à luta pela inclusão de grupos marginalizados, em situação de fragilidade social”, escreveram os autores.
Ainda falando sobre saúde, também houve um importante aprendizado no âmbito dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que são fundamentais por oferecer atendimento multidisciplinar e acolher no território onde as pessoas circulam. Em estudo de 2003, publicado na Revista Latino-Americana de Enfermagem, acerca do manejo de crises nos Caps Álcool e Drogas (Caps AD) — que funcionam 24 horas —, notou-se que 86,6% das situações emergenciais de usuários foram resolvidas ali mesmo, sem necessidade de internação psiquiátrica prolongada. Para boa parte dos usuários, a relação cotidiana com os profissionais de saúde num espaço conhecido (em vez de uma internação numa clínica distante) pode aumentar a adesão ao tratamento.
A efetividade do Caps depende de suporte contínuo (recursos, profissionais capacitados, leitos de acolhimento noturno etc.), bem como de articulações com outros serviços (assistência social, habitação, entre outros). Se faltam vagas ou equipes, perde-se a capacidade de acompanhar casos graves de forma sistemática, o que perpetua o problema na região. Segundo alguns analistas, é possível que a conjuntura política atual provoque essa situação. “O aumento da presença policial e os esforços para trazer a sede do governo estadual ao centro podem agravar ainda mais a situação, afastando qualquer perspectiva de solução”, diz Giordano Magri, da FGV, que liderou o novo relatório. O pesquisador ressalta que, mesmo com a sensibilidade sobre o tema, há poucas propostas concretas relacionadas à cracolândia que ultrapassem a lógica repressiva.
Pesquisas que discutem a situação das mulheres em situação de rua na região, como uma conduzida por pesquisadoras da USP e publicada em 2020 na revista Salud Colectiva apontam ainda para experiências de violência sexual e necessidade de serviços especializados em saúde reprodutiva. Há, portanto, uma demanda para que políticas de assistência e de saúde reconheçam vulnerabilidades específicas e ofereçam acolhimento sob medida, sem reforçar estigmas ou preconceitos. “A associação entre uso de drogas e incapacidade para o cuidado autônomo em seus modos de viver repercute na noção, bastante difundida socialmente, de que as mulheres usuárias de drogas não teriam a capacidade de cuidar dos próprios filhos, o que gera muita discussão no campo da formulação de políticas sobre a intervenção estatal de acolhimento e tutela de meninos e meninas”, afirmam as autoras no artigo.
Por fim, as entrevistas do estudo de 2024 sobre a cracolândia reforçam o desejo de participar ativamente das decisões que dizem respeito ao território. De acordo com os pesquisadores, políticas isoladas ou puramente repressivas não vão resolver a situação do local. A aposta é em estratégias que incluam programas habitacionais, assistência de saúde mental contínua, oportunidades de trabalho ou renda e redução de danos — sem perder de vista os direitos humanos. Do contrário, as repetidas internações, a repressão violenta e a circulação constante de pessoas pela região tendem a persistir, perpetuando o quadro de precariedade.
Apesar do cenário desolador, há estratégias possíveis e caminhos a serem integrados. Metade dos entrevistados da pesquisa mantém contato regular com as famílias, indicando que laços sociais existem e podem ser trabalhados nos processos de ressocialização e no estímulo a práticas mais saudáveis. Vários moradores do fluxo falam em “cooperativas”, “cursos profissionalizantes” e “acesso à habitação digna” como pontes para abandonar o uso de drogas.