entrevista

O dilema da produtividade

04 de outubro de 2023
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Desde o início deste século, se alguém pretender discutir problemas estruturais do Brasil, como a pobreza e a desigualdade, cairá, inevitavelmente, em algum artigo do economista Naercio Menezes Filho. Nos últimos 20 anos, o hoje professor no Insper, em São Paulo — onde dirige o Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (Cpapi) e coordena a Cátedra Ruth Cardoso —, se dedicou a entender esses pontos vitais da compreensão do País não apenas apontando para eles mesmos, mas para suas causas menos óbvias: a educação infantil ou a aproximação brasileira com a China, por exemplo.

Hoje, o economista tem uma percepção clara do principal dilema do Brasil: os gargalos da primeira escola. “Os trabalhadores têm pouca habilidade de leitura e escrita, cálculos, ciência — e isso desde o ensino fundamental até o médio”, diz Menezes Filho à PB. Na próxima segunda (11/10), ele participará da mais nova edição do Café Sem Filtro, iniciativa da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), que vai discutir a empregabilidade em um mercado cada vez mais digital. Ao lado dele, outro nome de peso para o debate: o sociólogo José Pastore, que preside o Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação. O evento será transmitido ao vivo no canal no YouTube da Entidade.

A seguir, trechos da conversa que a PB teve nesta semana com o economista sobre os tópicos que ele conversará com Pastore.

Por que, apesar da digitalização estar em alta no mundo há pelo menos uma década, a qualificação do trabalho, no Brasil, permanece tão analógica?

O fenômeno da digitalização vem crescendo, mas houve um salto vertiginoso, na verdade, nos últimos dois anos, com o surgimento do ChatGPT e de outras tecnologias de Inteligência Artificial (IA), que prometem avanços muito significativos no futuro. Em outras palavras, essas ferramentas estão acelerando a digitalização e o uso da tecnologia no mercado de trabalho. As transformações que causarão são enormes. O problema nacional é que não acompanhamos esse ritmo por causa da qualidade da nossa educação. Os trabalhadores têm pouca habilidade de leitura e escrita, cálculos, ciência — e isso desde o ensino fundamental até o médio. Nota-se isso que estou dizendo no fato de irmos muito mal nos exames internacionais. É uma falta de preparo básico para a vida, que está muito distante da própria demanda digital. Se o problema fosse apenas digital, ainda daria para pensar em treinamentos, capacitações, mas a dificuldade é de ordem mais básica do que isso.

Considerando que o efeito é a baixa produtividade, dá para resolver o dilema digital diretamente ou é preciso resolver questões estruturais anteriores?

Acho difícil [lidar com a digitalização diretamente]. É preciso, antes, melhorar a qualidade da nossa educação básica. Quando isso acontecer, com jovens sabendo novas técnicas, mas também dominando cálculo, escrita, ciências, relações, eles também terão melhores condições de lidar com essas ferramentas e tecnologias digitais, como a própria IA. A produtividade brasileira é baixa justamente por causa disso, mas não só: é ainda uma economia fechada e com um sistema tributário complexo, por exemplo. Estamos há pelo menos 40 anos estagnados, com uma taxa de crescimento muito baixa porque não conseguimos alavancar a produtividade.

Por que a escola não dá conta de superar esse gargalo?

É a pergunta que todos nós queremos responder. Ninguém sabe ainda. É curioso: existe muito dinheiro investido, muitas cabeças, ONGs, entidades do terceiro setor e cientistas, mas simplesmente não sabemos. Algumas regiões até conseguiram fornecer boas experiências, como a sempre citada Sobral, no Ceará, que melhorou bastante a qualidade educacional, em especial no ensino fundamental. No entanto, continua muito ruim. Por algum motivo, nós não conseguimos enfatizar a educação da forma como é preciso, cobrar os professores, estimular o uso de avaliações, fazer políticas públicas baseadas em evidências. Eu, que estudo esse tema há 20 anos, não sei responder. Tem algo aí que ainda não sabemos o que é.

Qual é o papel da informalidade nesse fenômeno?

É um problema enorme. As empresas informais investem menos nos seus trabalhadores e, da mesma forma, são menos produtivas do que as formais. A questão é até anterior: muita gente cai na informalidade justamente porque não tem nível escolar para trabalhar no setor formal, ou sem sequer ter completado o ensino médio ou com um percurso educacional muito ruim. Vista dessa forma, a informalidade — reflexo da falta de qualificação dos trabalhadores e dos empresários — tem, como consequência, a própria produtividade baixa.

E o agronegócio? Considerando que é o setor que mais cresce no País há décadas, qual é o peso que ele exerce sobre isso?

Quase nenhum. O agronegócio cresce porque importa máquinas e fertilizantes da China e, com elas, consegue aumentar significativamente a sua produtividade. Esse ciclo se completa quando os produtores se tornam capazes de exportar mais e, com isso, melhorar os indicadores econômicos nacionais. Na verdade, a produtividade brasileira só avança alguma coisa por causa do agronegócio. Não fosse ele, o Brasil estaria em uma situação bem pior, considerando que os outros setores estão estagnados.

Os trabalhadores do agro têm essa qualificação que falta aos demais?

É que o agronegócio tem poucos trabalhadores. No Mato Grosso e no Ceará, existem fazendas enormes que já são totalmente digitalizadas. Existe uma pessoa lá com o sistema concentrado no seu notebook e, por meio dele, consegue acompanhar toda a produção.

Isso já é uma realidade?

Sim. O agronegócio precisa mais de máquinas e computadores do que de pessoas. Elas estão ali apenas para ler as informações.

O senhor tem argumentado sobre a importância da gestão nas empresas nacionais para reverter esse cenário. Qual é a situação hoje?

O dilema é que práticas gerenciais modernas ainda não são regra nas empresas brasileiras, sobretudo nas pequenas, muitas delas informais. Obviamente que é possível encontrar essas práticas nas grandes, mas a economia do País é formada quase totalmente por essas pequenas e médias, que ainda enfrentam muitas dificuldades com gestão. É por isso que aponto sempre a necessidade da abertura da economia, do estímulo à concorrência e a permissão da importação de insumos avançados. Mas essas práticas e inovações surgem, sobretudo, da concorrência.

E isso não acontece no nosso mercado?

Não. Muitas empresas sobrevivem sem práticas gerenciais avançadas, porque o governo subsidia setores ou regiões inteiras. E assim vamos mantendo vários negócios sem nenhum tipo de tecnologia, procedimentos inovadores, nada.

A China tem investido cada vez mais na chamada economia digital no Brasil, produzindo carros elétricos e fornecendo serviços via app para o mercado nacional. É um fator que pode impactar o quadro que o senhor está apontando?

Os chineses demandam mais matérias-primas da agricultura, como minerais e soja, do que qualquer outra coisa. O que o país vende no Brasil são seus produtos já prontos. Isso significa que não haverá estímulo à digitalização dos trabalhadores brasileiros — que são, nesse projeto, apenas consumidores.

Vinícius Mendes Divulgação
Vinícius Mendes Divulgação
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