Pela comida de verdade

04 de julho de 2025
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Eleito pelo jornal The Washington Post como uma das 50 personalidades que mais influenciarão a sociedade em 2025, o epidemiologista Carlos Augusto Monteiro criou, em 2009, o conceito de ultraprocessado. Seu argumento central — baseado em evidências cientificas — é que o grau de processamento e a presença de aditivos nos alimentos, como corantes e aromatizantes, afetam a saúde. Atualmente, os ultraprocessados são associados a mais de 30 doenças.

O especialista liderou as pesquisas que resultaram na classificação denominada NOVA, que identifica os alimentos de acordo com o grau de processamento: (1) in natura ou minimamente processados; (2) ingredientes culinários processados; (3) alimentos processados; e (4) alimentos ultraprocessados. Antes disso, os alimentos eram classificados por serem fontes de nutrientes específicos. Por exemplo: grãos de cereais, massas, pães e biscoitos eram categorizados como fontes de carboidratos.

Em entrevista à Revista Problemas Brasileiros, Monteiro, que é coordenador científico do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP), fala sobre as ações necessárias para que a população consuma mais alimentos de verdade, como medidas de conscientização para reduzir o consumo desses produtos e para ressaltar a importância de a alimentação ser abordada sob as ópticas da equidade de gênero, da vida doméstica e da justiça social.

Com a inflação afetando os alimentos in natura, os ultraprocessados ficam ainda mais baratos. Quais medidas sugere para amenizar ou reverter esse quadro?

É fundamental a implementação de políticas públicas que reduzam a desigualdade no acesso e fortaleçam a autonomia alimentar da população. É preciso fortalecer as agriculturas familiar e agroecológica, por exemplo, além de promover iniciativas que facilitem a comercialização de alimentos saudáveis a preços acessíveis. A aprovação recente da Cesta Básica Nacional, com alíquota zero, promete um impacto positivo na qualidade da alimentação da população brasileira. Além disso, é importante continuar defendendo que ultraprocessados sejam tributados como produtos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente.

Há uma quantidade de consumo aceitável de alimentos ultraprocessados ou a orientação é sempre a substituição?

Do ponto de vista da saúde pública, a recomendação é que sejam evitados. E isso está escrito com todas as letras no Guia Alimentar para a População Brasileira: “Prefira sempre alimentos in natura, ou minimamente processados, e preparações culinárias no lugar de alimentos ultraprocessados”. Não se trata de moralizar o consumo individual, mas de proteger a coletividade diante de um sistema alimentar que prioriza o lucro, e não a nutrição. São produtos criados para serem hiperpalatáveis, convenientes e altamente lucrativos — e não para alimentar as pessoas. A própria noção de “quantidade aceitável” parte de uma lógica equivocada, como se estivéssemos falando de um alimento tradicional que, em excesso, pode fazer mal. Não é esse o caso.

Além dos avisos em embalagens sobre teor de açúcar, sódio e gorduras saturadas, poderia haver uma ação mais contundente contra a indústria dos alimentos processados?

Estamos lidando com produtos que, assim como o cigarro, causam dependência, adoecem milhões e sobrecarregam os sistemas de saúde. A diferença é que enquanto o tabaco foi corretamente reconhecido como uma ameaça à saúde pública e o tema, abordado por políticas robustas — incluindo restrições à publicidade, aumento de impostos, proibição de patrocínios e campanhas contundentes —, os ultraprocessados ainda são tratados com uma tolerância perigosa. A indústria desses alimentos utiliza as mesmas estratégias da do tabaco, ao minimizar os riscos, financiar estudos para gerar dúvidas, interferir em políticas públicas e investir muito em publicidade. Precisamos encarar isso como uma questão de saúde coletiva e soberania alimentar, o que inclui regular fortemente a publicidade — especialmente aquela dirigida a crianças — e restringir a venda e a distribuição desses produtos em escolas e hospitais.

A versão atualizada do Guia Alimentar para a População Brasileira foi usada como base para a criação da nova rotulagem de alimentos e para a proibição de ultraprocessados em escolas. Como os conceitos trazidos no Guia são refletidos, de fato, na segurança alimentar da população, não se restringindo ao campo teórico?

O Guia Alimentar para a População Brasileira vai muito além de um simples documento teórico. A publicação é uma ferramenta fundamental para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, com reflexos diretos na segurança alimentar da população. Ainda há muito a ser feito para a implementação do Guia, mas este já está concretizado em políticas públicas que promovem uma alimentação mais saudável, como a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), orientada pelos princípios do Guia, defendendo a garantia do direito à alimentação sadia e sustentável. Um exemplo claro é a implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que utiliza os conceitos do Guia para garantir refeições saudáveis nas escolas públicas. Leis municipais do Rio de Janeiro e de Niterói, que proíbem a venda e a distribuição de ultraprocessados nas escolas, também são reflexos das orientações do Guia. A Cesta Básica Nacional, aprovada no âmbito da Reforma Tributária, é totalmente baseada no Guia.

Com os longos deslocamentos entre casa e trabalho, por exemplo, muitas pessoas não desfrutam de tempo de qualidade em casa. Como é possível conciliar as rotinas para cozinhar e, até mesmo, a família sentar-se à mesa para as refeições?

O ato de cozinhar não é apenas uma prática alimentar, mas também cultural e social. No contexto atual, sabemos que os longos deslocamentos e as rotinas de trabalho intensas dificultam a vida de muitas famílias. Contudo, como destaca a nutricionista Patrícia Jaime no artigo “Superar a lógica dos ultraprocessados exige cozinhar mais e debater gênero”, publicado no jornal Folha de S.Paulo, cozinhar é um componente essencial para as promoções da saúde e da sustentabilidade, e não pode ser visto apenas como um privilégio. É preciso ter um olhar sobre equidade de gênero — a prática de cozinhar precisa ser compartilhada e desmistificada como uma tarefa exclusivamente feminina. A reflexão que Patrícia traz sobre a necessidade de debater gênero dentro dessa lógica é central, pois envolve não apenas a saúde, como também a organização da vida doméstica e a justiça social. Além disso, é preciso pensar em políticas públicas que estimulem essa prática, direta ou indiretamente. O fim da escala 6×1, por exemplo, é um caminho para que as pessoas tenham mais tempo para fazer da alimentação saudável uma prioridade.

Moura Leite Netto Léo Ramos Chaves/Pesquisa FAPESP
Moura Leite Netto
Léo Ramos Chaves/Pesquisa FAPESP
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