entrevista

Reconfigurações política e social

07 de dezembro de 2022
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O Brasil de 2023 é bem diferente daquele do início deste século. O brasileiro vive em uma sociedade multipolar, influenciada por personagens e instituições de variados segmentos. Enquanto o Judiciário está mais ativo, o Congresso se mostra dono de uma ampla fatia do orçamento da União, o que confere ao parlamento maior poder de barganha com o Executivo. Para o cientista político Murillo de Aragão, CEO da consultoria Arko Advice, a polarização até pode enfraquecer, mas um núcleo permanecerá ativo para as próximas eleições. “O Brasil prosseguirá sendo um país quase tricameral: qualquer decisão relevante do Congresso terminará sendo revista também no STF”, diz, ao afirmar que o embate entre os três poderes está longe de acabar. Ao avaliar a governabilidade de Lula (PT), Aragão destaca que o presidente terá de estabelecer um diálogo transversal.

Você tem dito que o Brasil possui, hoje, uma “uma topografia política complexa”. Quais aspectos compõem essa complexidade?

A topografia política do Brasil é complexa porque apresenta vários acidentes, seguindo nessa analogia topográfica. O primeiro deles é que as instituições têm um formato diferente e, sobretudo, sustentam um relacionamento distinto entre si. Houve um fortalecimento do Judiciário, como ficou evidenciado durante as eleições, assim como do Legislativo, que se expressa no debate sobre o orçamento secreto. Ao mesmo tempo, houve um enfraquecimento do Poder Executivo, além da autonomia que o Banco Central (Bacen) ganhou, transferindo independência para o presidente [do banco] quanto à equipe econômica do governo e toda a gestão das políticas monetária e cambial do País. Além destas questões institucionais, há o aspecto social. A população está altamente conectada à internet, há uma multipolaridade de grupos de interesse atuando como instrumentos de pressão política – muito diferente do que existia décadas atrás – e o próprio mercado financeiro passou a ter maior participação de pessoas. Até alguns anos atrás, tínhamos cerca de 500 mil CPFs nesse ambiente e, hoje, são quase 4 milhões; sem contar as fintechs, mais de 300, promovendo um intenso processo de bancarização. Tudo isso transformou o Brasil de maneira profunda, tanto em termos de sociedade quanto de vida política.

Pensando nesse fortalecimento do Judiciário, como ficará a relação do presidente eleito com o Supremo Tribunal Federal (STF)?

Provável que menos tensa. Primeiro, porque Jair Bolsonaro tensionou muito essa relação, fazendo com que o Judiciário reagisse. Segundo, porque, de alguma forma, o Judiciário se mostrou a favor de Lula durante a campanha eleitoral. Não quer dizer que houve conspiração para ele vencer a eleição, como foi levantado depois do resultado, mas não há dúvida de que havia uma simpatia à candidatura do PT em detrimento à de Bolsonaro – principalmente pelo histórico dos quatro anos de atrito, inclusive com palavras duras entre eles. Contudo, isso não significa também que o Judiciário deixará de ser ativo. Mesmo a tão chamada “judicialização da política” não será superada, porque é provocada, em grande parte, pelos agentes políticos – que vão continuar fazendo com que o STF tome decisões com impacto político. Isso é dizer, portanto, que o Brasil prosseguirá sendo um país quase tricameral: qualquer decisão relevante do Congresso terminará sendo revista também no STF.

Houve um evidente fortalecimento dos partidos de centro-direita no Congresso. Como será a relação destes com o governo Lula?

O Congresso tende a se organizar em torno de consensos. Por várias vezes, a oposição já terminou apoiando (ou, ao menos, não destruindo) decisões de governos anteriores, por exemplo. Basta lembrar que, em 2015, foi aprovado um programa econômico com o apoio dos opositores do governo, e, logo depois, os mesmos agentes promoveram o impeachment de Dilma Rousseff. O que é relevante é o diagnóstico de que o País é uma sociedade de consenso. No parlamento, isso significa dizer que não haverá situações de grande impasse, mas de negociações intensas. É um fato, por exemplo, que parte do Centrão vai apoiar o governo Lula, e não é difícil que a maioria acabe o apoiando. Tudo será negociado caso a caso, principalmente as agendas mais complexas. Contudo, haverá os oposicionistas ligados a Bolsonaro, cujo interesse é manter a agenda do agora ex-presidente, o que levará muitos deles a se manterem organizados como forma de sustentar a competitividade para as eleições de 2026.

E do ponto de vista social, com a intensa polarização que se expressou com força depois da eleição, o que se espera a partir do ano que vem?

É a primeira vez que Lula chegará ao poder com uma oposição estruturada tanto dentro do Congresso como nas ruas. É uma situação inédita no Brasil. Este monopólio era das esquerdas, mas deixou de ser há algum tempo. Agora, a tendência é que as ruas fiquem divididas. Essa polarização talvez até se enfraqueça, mas terá um núcleo ativo que permanecerá para as próximas eleições. Este também é um quadro diferente de outrora, quando existia um ciclo de consensos que se moviam do PSDB para o PT, ou seja, de Fernando Henrique Cardoso para Lula. O ciclo acabou quando o governo Dilma entrou em colapso pelas próprias contradições e pela falta de apoio político. Foi quando começaram os períodos intermediário, com Michel Temer, e, depois, o de renovação política, que culminou em Bolsonaro. Mas a narrativa bolsonarista não consegue ser majoritária, embora muito significativa, e é por isso que tende a continuar relevante pelos próximos anos.

Como vê o protagonismo de Geraldo Alckmin no processo de transição do governo? Ele deve ser um emissário para quebrar resistências com os setores mais conservadores?

Acho que sim. Alckmin foi mais importante na transição do que durante a campanha presidencial, embora tenha sido fundamental no segundo turno. Agora, ele pode usar toda a sua experiência política no processo, o que dá a ele uma amplitude de atuação muito grande com vários setores da política. Alckmin dialoga bem com os partidos. Lula já entendeu que sua vitória decorreu, sobretudo, do apoio de não lulistas, ou seja, daqueles que votaram nele para não votar em Bolsonaro. Isso faz com que ele saiba também a necessidade de estabelecer um diálogo transversal. Neste sentido, Alckmin faz toda a diferença.

Os investidores vivem uma expectativa de definição de uma nova âncora fiscal e de uma agenda de reformas?

A política econômica a ser construída não será totalmente centrada no ideário fundamental do PT, porque existe o balizamento do mercado – que se expressa por meio da taxa de juros, do câmbio e da Bolsa de Valores. Se estes três índices funcionam mal, há o temor do governo que eles comprometam o seu desempenho. Dito em outras palavras, não é chegar agora e dizer: “Vou fazer o bolo do jeito que eu quero”. Pelas configurações política e social do Brasil, embora se reúna uma maioria no Congresso, alguns setores podem exercer uma oposição muito forte caso as medidas sejam desequilibradas ou totalmente contra o funcionamento do mercado, casos do agronegócio e dos evangélicos. Isto é, este programa econômico será temperado pelas circunstâncias e pela necessidade de construção de consensos.

Antes das eleições, você dizia que “venceria nas urnas quem errasse menos”. O presidente Jair Bolsonaro errou muito?

Ambos [Lula e Bolsonaro] erraram bastante. Nós já sabíamos que seria uma eleição muito apertada, com um favoritismo ligeiro para Lula, e foi o que aconteceu. Este diagnóstico decorria da nossa observação de que seria um pleito de erros. De fato, ganhou quem errou menos. Na verdade, Bolsonaro errou demais em não conseguir reduzir a significativa rejeição das classes média e média alta, que fez a diferença no fim, já que foi no Sudeste que a derrota se efetivou – ainda mais perdendo em Minas Gerais. Ele precisava ganhar naquele Estado com certa folga para vencer as eleições. A rejeição do eleitorado feminino foi muito importante também. Se Bolsonaro tivesse escolhido uma vice-presidente mulher, teria reduzido um pouco o impacto. A questão da vacina também o prejudicou, mais pela narrativa do que pela atitude, porque, apesar do atraso na chegada do imunizante ao País, a economia está retomando agora. Chega até a ser um fenômeno único na nossa história, ter uma deflação, mas o presidente não conseguiu capitalizar as realizações no cargo, minimizar a agressividade das narrativas e diminuir a rejeição com os eleitores mais pontuais.

E Lula?

Também errou, como na demora em chegar ao centro do espectro político. É que, no caso dele, houve o benefício dos erros que Bolsonaro cometeu. Isso me faz lembrar dos episódios da deputada Carla Zambelli, na véspera da eleição [que apontou uma arma para um cidadão no dia anterior ao pleito, em São Paulo], do [ex-deputado] Roberto Jefferson [que, diante de uma operação da Polícia Federal em sua casa, reagiu com tiros de fuzil e arremesso de granadas] e, ainda, das declarações do ministro Paulo Guedes sobre o salário mínimo.

Como enxerga a vitória de Tarcísio de Freitas em São Paulo à luz da permanência do bolsonarismo para além da cadeira presidencial?

Essa vitória reflete alguns sentimentos muito fortes do eleitorado paulista: o primeiro é um forte antipetismo, não necessariamente antilulista. O segundo é a força do próprio bolsonarismo no Estado. O terceiro foi a desintegração do PSDB – que organizou a política em São Paulo nas últimas décadas – a partir da ascensão de João Doria e durante a disputa equivocada ao Planalto, que passou por cima das prévias do partido. Isso enfraqueceu as possibilidades de Rodrigo Garcia, que é um bom governador, de disputar o pleito. Agora, não há dúvidas de que Tarcísio significa a sobrevivência do bolsonarismo. Se ele fizer um bom trabalho, conseguindo ainda se contrapor ao governo federal, dará força ao próprio Bolsonaro na disputa da próxima eleição. Vale lembrar que o único Estado federalizado, ou seja, que tem impacto federal na sua atuação local, é São Paulo. Em outras palavras, é um país dentro do Brasil, quase uma região autônoma. Esta influência, claro, reveste o governador.

“O Congresso tende a se organizar em torno de consensos. Por várias vezes, a oposição já terminou apoiando (ou, ao menos, não destruindo) decisões de governos anteriores.”

Qual é a sua opinião sobre os julgamentos que Bolsonaro está sujeito a partir de agora?

Vão continuar, mas perdem a intensidade. Parte do impulso destes processos era de guerrilha política. À medida que ele se afastar do poder, isso se reduzirá bastante. Agora, ele terá de que se defender. Há até quem queira que fique inelegível. É difícil dizer. Já ouvi também que, no novo governo, teremos um STF e um STJ [Superior Tribunal de Justiça] lulistas, o que não é verdade. A realidade é que, nos próximos 12 meses, dois nomes devem ser substituídos no STF: Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, ambos indicados pelo PT e que serão trocados por outros dois, provavelmente ligados ao mesmo universo. Isso significa que não haverá uma grande alteração no núcleo de forças dentro da Corte. O entendimento e o diálogo, sim, serão outros. Para Bolsonaro, a importância disso é que ele terá de rever suas estratégias para se defender de maneira mais eficiente.

Há também uma nova safra de políticos em ascensão. É possível afirmar que estamos entrando em um novo ciclo político?

Muitos nomes desse “novo ciclo” já são experientes. Simone Tebet (MDB) foi senadora e prefeita [de Três Lagoas/MS]. Eduardo Leite (PSDB) já foi governador [do Rio Grande do Sul] e prefeito [de Pelotas], embora seja jovem. A renovação está ocorrendo, mas de forma lenta, tanto dentro quanto fora da política. Esta última perdeu intensidade se comparada ao que aconteceu em 2018. Dentro da política, não: Renan Filho (MDB), um jovem promissor, foi eleito senador e era governador de Alagoas. Eduardo Bismarck (PDT) já era deputado federal pelo Ceará, e a Tabata Amaral (PDT), por São Paulo. É uma guarda que vai sendo trocada aos poucos.

Entrevista originalmente publicada na edição 473 da revista PB. Confira outros destaques aqui.

Lucas Mota e Vinícius Mendes Divulgação
Lucas Mota e Vinícius Mendes Divulgação
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