Às vésperas das eleições municipais, o Brasil urbano convive com complexidades locais que refletem os gargalos do País, como violência e mobilidade. Realidades distintas se tornam dilemas nacionais: enquanto municípios do Rio Grande do Sul tentam se reerguer da tragédia das inundações, Belém (PA) se prepara para receber o principal encontro climático do planeta. Em meio a tantos desafios, fenômenos como a periferização causa impactos diversos, do faturamento de comércios locais à produtividade.
No início da tarde de uma sexta-feira de maio, uma sala do segundo andar do Insper, na zona sul de São Paulo, esperava a chegada dos membros do Grupo de Estudos Urbanos da instituição. Liderado pelo cientista de dados Adriano Borges, o núcleo se reúne uma vez por mês para debater os problemas das cidades brasileiras — que vão da violência à mobilidade e da gestão de resíduos ao planejamento urbano. Naquele dia, em pauta um estudo sobre a absorção de mão de obra migrante em metrópoles brasileiras pelo mercado de trabalho formal e outro, com dados que o arquiteto João Leonardo Dadalti, diretor de uma incorporadora de médio porte da capital paulista, levantou em 2015, sobre o ambiente imobiliário paulistano em um MBA de Real Estate na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Essa última pesquisa tem como pano de fundo uma percepção que Dadalti sustenta há uma década: “Mover-se pelas metrópoles brasileiras é, antes de locomoção, um desafio”.
Na análise do arquiteto, os padrões urbanos, em boa parte do território nacional, se conformam tanto pela lógica das construtoras quanto pelas revisões das regras de uso do espaço, que costumam acontecer periodicamente nos planos diretores. Ele nota, então, que um dos poucos consensos entre mercado e Poder Público é a percepção de que deslocamentos são difíceis, principalmente na experiência cotidiana dos mais pobres, que dependem do transporte público. Esse fenômeno, cuja intensidade máxima se vê em São Paulo, se repete em outros centros urbanos, apesar das diferenças estruturais. Há pelo menos uma década, a solução adotada passa pelo adensamento de áreas próximas a eixos modais de mobilidade e trânsito — como estações de metrô e trem —, quando a infraestrutura existe.
Na capital paulista, as incorporadoras precificam a solução com base no metro quadrado, cujo valor varia a partir, justamente, da distância entre os empreendimentos imobiliários e esses eixos. Mas não só: entram na conta as faixas de renda dos potenciais clientes e o perfil socioeconômico de cada região. No raciocínio dos legisladores municipais, construir mais edifícios residenciais em torno de estações existentes é um jeito de diminuir o tempo dos percursos pelo mapa urbano e, se possível, reduzir o volume de carros nas ruas. A cidade do presente (e do futuro) é o resultado dessa equação.
No entanto, segundo Dadalti, o principal desafio atual que as metrópoles brasileiras precisam lidar é com a própria metamorfose. “A população de São Paulo continua aumentando. É um exemplo acabado desse fenômeno, porque a cidade convive com uma demanda constante por mais habitação. Como regular isso para que não seja tão periférica?”, questiona, citando o aumento de 1,8% no número de moradores da capital paulista entre 2010 e 2022, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Especialistas ouvidos pela PB apontam que a periferização é um dilema comum de municípios maiores, porque quanto mais distantes são os bairros entre si, mais tempo é necessário para se deslocar por essas regiões. Em um país como o Brasil, cujas cidades se constituíram historicamente na lógica de centros rodeados por vilas, a tendência é que os territórios urbanos cresçam para os lados, distanciando, cada vez mais, novas populações das áreas centrais. Os efeitos são de escalas distintas, que vão desde o faturamento dos comércios locais até a taxa total de produtividade nacional. De acordo com Dadalti, esse problema pode ser ainda maior. “Cidades pequenas e médias até têm ferramentas para regular esse crescimento, nem que seja abrir loteamentos em terrenos inexplorados, por exemplo. Mas as metrópoles já estão saturadas.”
Soluções como as observadas na capital paulista podem ser paliativas ou, mais do que isso, símbolos de uma expansão urbana que se deu, literalmente, passando por cima da natureza e das próprias regulações. É o que adverte a antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha, que leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao olhar para as chuvas que destruíram quase todo o Estado em maio, numa das maiores tragédias climáticas da história do Brasil. Para ela, o padrão de expansão das cidades gaúchas explica parte da catástrofe. “São anos de políticas de invasão de áreas inundáveis, próximas a rios e lagos, que foram feitas para atender às demandas dos mercados imobiliários. Políticas são produzidas dentro das câmaras municipais sem nenhum tipo de atenção às dinâmicas ambientais”, alerta.
Porto Alegre, nesse sentido, é um exemplo cabal. Ana Luiza cita os bairros que, no limite, nem sequer deveriam existir na capital gaúcha — ou pelo menos não nas áreas que ocupam hoje: Menino Deus, Praia de Belas, Cidade Baixa e o próprio Centro Histórico. “São terrenos alagáveis, em que acontecem alguns processos biológicos do Guaíba e das espécies que vivem ali. A cidade foi avançando sobre esses espaços quase até o limite da água”, lamenta. “É curioso que as pessoas só se lembrem da enchente de 1941”, observa, recordando o que era, até 2024, a histórica tragédia climática de Porto Alegre — a invasão do Guaíba por quase toda a capital entre abril e maio de sete décadas atrás. “No entanto, há vários relatos antigos de inundações semelhantes que aconteceram no passado. Não foi uma, não foram duas. Mesmo assim, a cidade continuou avançando pelas regiões próximas ao lago.”
Desafios do Brasil urbano
Nos últimos dois meses, a PB fez a mesma pergunta para fontes diferentes entre si em diferentes lugares do País: quais são, hoje, os principais desafios das cidades brasileiras? Às vésperas das eleições municipais, as respostas soam fundamentais. Além de Dadalti, de São Paulo, e Ana Luiza, do Rio Grande do Sul, foram ouvidos um líder comunitário de Belém (PA) e outro de Salvador (BA), um gestor público mineiro com formação nos Estados Unidos e uma socióloga carioca radicada na capital paulista, além de uma miríade de gente em cidades como Campinas, Peruíbe e Itapeva (SP), Salvador e Feira de Santana (BA), Natal (RN), Brasília (DF), Cachoeiro de Itapemirim e Vitória (ES), Maceió (AL) e Florianópolis e Urubici (SC). A escolha desses municípios foi feita entre os interlocutores conforme a apuração prosseguia.
É interessante, mas não surpreendente, notar como pessoas que tenham alguma atuação política — seja nas mobilizações da sociedade civil, seja no nível institucional —, fornecem diagnósticos técnicos dos problemas nacionais urbanos, enquanto quem experimenta a cidade no cotidiano relata, de forma mais concreta (e, às vezes, pormenorizada), esses dilemas comuns. Como boa parte da população utiliza transporte público, este aparece como tema central, das grandes metrópoles às pequenas localidades. O que muda são os patamares.
Violência localizada
Em setembro do ano passado, após anos de trabalho, o UrbanData, de Bianca Freire-Medeiros, abriu uma base com 6 mil pesquisas produzidas sobre São Paulo, entre 1940 e 2015. De certa forma, as linhas de estudos que se referem à capital paulista ajudam a entender como todo o tecido urbano brasileiro é observado pelas lentes das ciências humanas. Alguns dados, como o crescimento da agenda sobre violência a partir dos anos 2000, quando a cidade e o País passaram a conviver com a expansão de facções criminosas. “Insegurança é, sem dúvida, uma das grandes dificuldades do nosso mundo urbano”, diz a socióloga. “Ela pauta discursos midiáticos relevantes, com impactos eleitorais, e determina padrões de circulação das pessoas em cidades de perfis diferentes, ainda que existam dinâmicas locais”, continua.
Como outros pesquisadores desse campo, Bianca observa como diferenças regionais e econômicas modulam obstáculos em torno da violência. Em outras palavras, a insegurança em São Paulo ou no Rio é muito diferente da experimentada em cidades do Norte e do Nordeste, por exemplo. O crime organizado se valeu dessas distinções para avançar em direção a novos territórios. É assim que muitos municípios nortistas lidam, hoje, com índices de violência muito maiores do que em décadas passadas — resultados de conflitos em torno do garimpo, da extração ilegal de madeira e das rotas de drogas pela Floresta Amazônica. Assim, esses produtos são escoados ao mercado internacional com a ajuda da fragilidade institucional dos portos da região.
Contudo, isso não acontece apenas no Norte. No fim de junho último, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou, no anuário 2022, que 7 das 10 cidades mais violentas do Brasil (quanto a homicídios) estão na Bahia. Na lista das 20 localidades mais inseguras do País, 16 estão no Nordeste. Não são números triviais: em Santo Antônio de Jesus (BA), a taxa de mortes violentas registradas naquele ano foi de 94,1 para cada 100 mil habitantes. Em Jequié (BA), foi de 91,1. Como base comparativa, o lugar mais mortífero do mundo, hoje, é Colima, na região oeste do México, onde a margem é de 182 mortes violentas por cada 100 mil moradores. “As facções do Sudeste passaram a operar também no Nordeste, e sobretudo na Bahia. A consequência foi uma pulverização de organizações criminosas nas cidades do interior baiano, que se inseriram nos mercados de drogas e armas”, explica o historiador Dudu Ribeiro, coordenador-executivo da Iniciativa Negra Por uma Nova Política de Drogas (INNPD).
(((((((ARTE SOBRE NÚMEROS DE MORTES VIOLENTAS))))
Em São Paulo, depois de mais de uma década, a insegurança voltou a ser apontada como o principal problema da cidade pela população. Durante esse período, a Saúde sempre esteve em primeiro plano. A mudança no catálogo de problemas foi percebida por pesquisas recentes do Datafolha. No Rio de Janeiro, ao contrário, a criminalidade é quase consenso: 74% dos cariocas dizem que essa é a maior preocupação, constatação que se repete em outras capitais, como Manaus (AM) e Salvador (BA).
Novos velhos dilemas
Em julho do ano passado, o governo estadual do Pará se antecipou à Organização das Nações Unidas (ONU) e anunciou que Belém sediará a Conferência das Partes (COP) 30, em 2025. O encontro, que reúne quase a totalidade de países do mundo em torno de objetivos para conter os efeitos do aquecimento global, se tornou o grande fórum de discussões globais acerca do clima. E, não à toa, alçou a capital paraense a outro status desde então. Assim que o governo brasileiro conseguiu, de fato, emplacar a cidade como sede da COP30, foram anunciados investimentos para reformas estruturais, além de uma série de aportes privados, como o da Vale, que liquidou parte de dívidas com o Estado para direcionar o dinheiro às obras.
“As pessoas aqui estão bem preocupadas”, dizia, à época, Ivan Costa, presidente do Observatório Social de Belém, filial local do Observatório Social do Brasil (OBS), um sistema criado pela sociedade civil para organizar ações sociais ao redor do País. “Há, sem dúvida, uma esperança de que a COP deixe algum legado para a população, mas pouca gente acredita que isso realmente acontecerá”, continuava. No começo de junho, o espírito permanecia o mesmo. De lá para cá, a capacidade da metrópole amazônica em receber a conferência foi posta à prova várias vezes — para ser sempre reforçada posteriormente. Na metade do semestre, houve até um boato de que São Paulo ou Rio poderiam assumir parte do cronograma de reuniões. Em março, porém, como forma de reforçar a posição do governo Lula, o presidente da França, Emmanuel Macron, foi recebido por ele em Belém, andando por cartões-postais e até navegando pelo Rio Guamá.
Costa, no entanto, segue reticente quanto às vantagens do município em receber o evento, mas, agora, apontando problemas mais concretos que permanecem às vésperas da conferência. O principal desses impasses, a propósito, está relacionado à preservação do meio ambiente: a gestão de resíduos sólidos. “Hoje, Belém está tomada por lixo; não há uma administração adequada para isso. E a situação é grave, porque está contaminando o meio ambiente.”O relato sobre a capital paraense reflete boa parte das cidades do Norte, a região mais pobre do Brasil. Algumas das piores métricas sociais do País se concentram ali. No último mapa de desigualdades do Instituto Cidades Sustentáveis (ICS), realizado apenas com base em capitais, Belém ocupava a 24ª posição das 26 unidades federativas analisadas (excluindo o Distrito Federal); Rio Branco, no Acre, a 22ª; e Manaus, no Amazonas, a 23ª. Belém ainda tem o segundo pior Produto Interno Bruto (PIB) per capita entre capitais brasileiras, atrás apenas de Salvador (BA), e a segunda maior taxa de desnutrição infantil (2,19%) do País.
((((((ARTE SOBRE DESIGUALDADE DAS CAPITAIS))))
A ÍNTEGRA DESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #482 IMPRESSA DA REVISTA PB. PARA CONTINUAR LENDO, ACESSE A VERSÃO DIGITAL, DISPONÍVEL NA PLATAFORMA BANCAH.