50 anos sem Vlado

19 de setembro de 2025

Em 25 de outubro de 1975, um sábado, o jornalista Vladimir Herzog apresentou-se, às 8 horas, ao Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do II Exército, na capital paulista. Na noite anterior, prometera aos agentes que foram prendê-lo na TV Cultura, onde era diretor de jornalismo, que prestaria depoimento de livre e espontânea vontade na manhã seguinte. O desfecho trágico marcou a história da repressão da ditadura brasileira, no período conhecido como anos de chumbo.

V

Vlado, como era conhecido o jornalista Vladimir Herzog, já sabia que, desde janeiro daquele ano dezenas de pessoas — em especial jornalistas — estavam sendo presas sob suspeita de vinculação com o então ilegal Partido Comunista Brasileiro (PCB). Apesar disso, optou por não fugir: nascido na atual Croácia, no seio de uma família judaica que imigrara para o Brasil para escapar dos nazistas, confiava nas instituições do País cuja nacionalidade havia adotado.

Submetido a sessões de torturas com choques elétricos, não resistiu — e algumas horas após a sua chegada ao DOI-Codi, estava morto. Na versão dos militares, enforcou-se em sua cela com uma tira de pano, “a cinta do macacão que o preso usava”. Uma falsificação grotesca, já que o cinto havia sido retirado junto com os cordões dos sapatos. A foto divulgada mostra o corpo pendurado pelo pescoço a uma grade, com as pernas curvadas e os pés no chão, posição inviável para um enforcamento.

Esses detalhes, entretanto, não incomodavam aqueles habituados a torturar, matar e apresentar atestados fajutos, como o assinado pelo médico legista Arildo de Toledo Viana, apontando “asfixia mecânica” como a causa da morte de Herzog. Somente em 2013 que o documento foi retificado, estabelecendo que “lesões e maus-tratos” provocaram o óbito.

Suicidados políticos

Na folha corrida dos crimes praticados nos porões da ditadura, aquele representava o 38º caso oficialmente registrado como suicídio, sendo o jornalista a 18ª pessoa detida a ser encontrada enforcada. Em oito casos anteriores, os enforcados também tinham os pés no chão, e em dois deles, os presos teriam morrido sentados. De acordo com a praxe do regime, o cadáver seria logo esquecido após um enterro silencioso, realizado pelas famílias amedrontadas, que nem sequer tinham coragem para abrir os caixões lacrados.

Daquela vez, porém, foi diferente. A viúva, Clarice Herzog, marcou o enterro para segunda-feira e determinou que o marido seria velado no domingo. Ao velório, no Hospital Albert Einstein, compareceram o cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arms, e o senador Franco Montoro. Trezentos automóveis seguiram o cortejo fúnebre até o Cemitério Israelita do Butantã, onde o rabino Henry Sobel determinou que o corpo fosse enterrado na área central, com todas as honras — e não na periferia, como determina a lei judaica para os que tiram a própria vida, como forma de condenar o pecado do suicídio.

De acordo com Elio Gaspari, no livro A ditadura encurralada, ouviram-se dois rápidos discursos da atriz Ruth Escobar, indagando “até quando vamos suportar tanta violência?”, e do presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, Audálio Dantas, que recitou um trecho do poema Navio Negreiro, de Castro Alves: “Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me Vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!”.

Luta pela liberdade

Herzog tinha 38 anos, deixou mulher, dois filhos e tornou-se um mártir, “símbolo da luta pela democracia, pela liberdade, pela justiça”, nas palavras do jornalista Sérgio Gomes, um dos presos políticos da época. No dia 31 de outubro de 1975, na Catedral da Sé, um culto ecumênico foi celebrado por Dom Paulo, pelo rabino Sobel e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, com a presença de mais de 8 mil pessoas, dentre elas personalidades como o filósofo francês Michel Foucault, cujas aulas na Universidade de São Paulo (USP) foram interrompidas pela greve dos alunos.

A onda de protestos, inédita desde 1968, ganhou a imprensa mundial e desencadeou uma campanha internacional em prol dos direitos humanos na América Latina, tornando o fim do regime militar uma questão de tempo. Deslocou, também, a favor do governo do general Ernesto Geisel, a balança do poder contra os militares da linha dura, que se opunham a qualquer movimento de redemocratização do País. Quando outra morte ocorreu em circunstâncias semelhantes, a do operário Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976, Geisel demitiu o comandante do II Exército, o general Ednardo D’Ávila Mello. Em 1977, defenestrou o ministro da Guerra, o general Sylvio Frota, abrindo caminho para a revogação do Ato Institucional 5 (AI-5) no ano seguinte.

Legado que fica

Duas iniciativas preservam a memória e o legado de Herzog — o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, atribuído desde 1979, e o Instituto Vladimir Herzog (IVH), criado em 2009 para “fomentar a cultura, a paz, a cidadania e o respeito à diversidade e à dignidade humana”.

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por uma revisão na Lei da Anistia de 1979, com o objetivo de anular o perdão dado aos representantes do Estado — policiais e militares — acusados da prática de tortura durante a ditadura. Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil, em 2018, por negligência na investigação do assassinato de Herzog.

Neste cinquentenário da morte do jornalista, contudo, reparações estão sendo feitas. A Advocacia-Geral da União (AGU) firmou um acordo com a família de Herzog, que prevê o pagamento de R$ 3 milhões a título de danos morais, acompanhado por desculpas públicas. “Estamos falando de uma mudança muito profunda de um Estado algoz, que está vindo aqui pedir desculpas por toda a barbaridade”, ressaltou o ministro Jorge Messias, advogado-geral da União, em junho de 2025.

Em outra vertente, o STF está analisando, desde fevereiro, o crime permanente de ocultação de cadáver, que se prolonga no tempo e não estaria no escopo da Lei de Anistia. De acordo com Flávio Dino, ministro do Supremo, a questão tem grandes impactos social e histórico, pois envolvem a memória e a responsabilização pelos crimes cometidos. Também se relaciona com “a conclusão milenar sobre um direito natural de pais e mães velarem e enterrarem dignamente seus filhos, que se estende aos descendentes”, afirmou. Ainda não há uma data para o julgamento, mas a expectativa é que ocorra em breve.

ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DA EDIÇÃO #488 (SET/OUT) DA REVISTA PB.
CONFIRA A ÍNTEGRA CLICANDO AQUI.

Herbert Carvalho
Débora Faria
Herbert Carvalho
Débora Faria