Amazônia em números

30 de abril de 2025

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Uma das regiões mais observadas e, ao mesmo tempo, mais mal-interpretadas do planeta acaba de ganhar uma nova representação. O Atlas da Amazônia Brasileira, lançado pela Fundação Heinrich Böll, traz 32 artigos assinados majoritariamente por autores indígenas, quilombolas, ribeirinhos, ativistas e comunicadores amazônidas. A proposta é clara: substituir o olhar técnico e externo sobre a floresta por uma narrativa construída a partir dos territórios.

Ao articular dados ambientais, sociais, econômicos e culturais com experiências locais, o Atlas oferece mais do que uma compilação de estatísticas. A publicação pretende funcionar como um contrapeso simbólico e político à forma como a Amazônia costuma ser retratada — um espaço vazio, exótico ou apenas recurso natural a ser explorado. “Queremos contribuir para uma mudança de perspectiva. Que o Brasil e o mundo possam conhecer a Amazônia novamente, desta vez, sob o olhar de quem a habita e a defende”, explica Marcelo Montenegro, coordenador de Justiça Socioambiental da Fundação no Brasil.

É a primeira vez que um Atlas da rede Heinrich Böll é produzido com base no Sul Global para circular também em países do Norte, uma inversão simbólica da lógica de produção de conhecimento.

Floresta em colapso

A leitura dos dados reunidos no estudo confirma um cenário de colapso. Entre 2019 e 2022, o desmatamento na região atingiu níveis recordes, estimulado principalmente pela expansão de pastagens. A região da Amacro (acrônimo para sul do Amazonas, leste do Acre e norte de Rondônia) concentrou mais de um terço da devastação registrada em 2022.

No mesmo período, o garimpo ilegal cresceu 90% dentro de áreas protegidas, com destaque para as terras indígenas. O impacto direto inclui contaminação de rios, conflitos fundiários e agravamento de crises humanitárias, como a vivida pela população ianomâmi.

Os ataques a defensores ambientais também se intensificaram: 39 ativistas foram assassinados na Amazônia em 2022, segundo o levantamento, inserindo o Brasil na lista dos países mais letais para quem atua na defesa de territórios. “O Atlas é de extrema importância pelas várias reflexões sobre a Amazônia. Discutir o avanço do crime organizado na região é falar de luta e resistência. Iniciei os estudos acerca do tema durante o doutorado, visando compreender melhor as redes de articulação do narcotráfico na região e sua relação com a questão ambiental — e espero que esse texto evidencie a urgência dessa questão”, explica o geógrafo Aiala Colares, membro do conselho editorial da publicação.

Ponto de não retorno

Um dos alertas mais graves do Atlas está fundamentado em estudos científicos recentes: a Amazônia pode atingir o chamado “ponto de não retorno” antes de 2050. Isso significa que, mesmo que o desmatamento seja estancado a tempo, a floresta pode perder a capacidade de regeneração autônoma.

Para reverter esse processo, os autores defendem medidas imediatas, como zerar o desmatamento, restaurar ao menos 5% do bioma e rever os modelos econômicos baseados na mineração predatória, na grilagem, no agronegócio intensivo e na financeirização da natureza.

“Enquanto os territórios dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais representam a resistência contra a mercantilização da natureza — ou seja, a luta pela diversidade de vidas e a coexistência entre humanos e não humanos —, a propriedade privada é a transformação da vida em grandes espaços homogêneos para a exportação, com destruição dessa natureza e a precarização do trabalho. Em outras palavras, uma plantation [nome dado a um sistema econômico agrícola que vigorou durante o Brasil colonial] no século 20”, explica José Heder Benatti, professor titular do curso de Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA). 

Território é futuro

Longe de se limitar à denúncia, o Atlas também apresenta caminhos. A publicação dá visibilidade a 508 iniciativas de agroecologia mapeadas na Amazônia Legal — experiências sustentáveis conduzidas por comunidades tradicionais e povos originários. Esses arranjos são apontados como alternativas reais ao colapso climático, em oposição às chamadas soluções de mercado, como os créditos de carbono.

“A Amazônia é uma das últimas fronteiras de abundância, com biodiversidade, práticas sustentáveis e saberes ancestrais mantidos por populações tradicionais e indígenas. Mas toda essa riqueza está sob ameaça constante”, pontua Montenegro, da Fundação Heinrich Böll. “Por isso, o Atlas é também um instrumento de fortalecimento dos direitos territoriais desses povos e comunidades, que historicamente têm garantido a proteção da floresta.”

Outro dado-chave contido na obra desmonta um dos mitos mais persistentes sobre a região: 75% da população vivem em áreas urbanas. A ideia de que a floresta é um espaço intocado ou isolado desconsidera o impacto direto das cidades, da infraestrutura e do consumo sobre o bioma. 

Ainda assim, os vínculos territoriais persistem. Com 250 línguas faladas no Brasil — muitas delas na Amazônia —, as diversidades linguística e cultural permanecem vivas, embora ameaçadas. Em um contexto de crise climática e autoritarismo, manter essa diversidade é um ato político.

Amazônia para o mundo ver

Publicado em português e inglês, o Atlas da Amazônia Brasileira é também uma preparação simbólica para a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), que será realizada em Belém, em novembro deste ano, e amplia o debate sobre justiças socioambiental e territorial. 

O estudo foi lançado em dia 23 de abril, na Casa Balaio, na capital paraense. O espaço — um casarão histórico que abriu as portas para ser ponto de encontro antes e durante a COP30 — recebeu jornalistas independentes, acadêmicos, gestores públicos, parlamentares, ativistas e comunicadores da região. Ao longo do evento, duas mesas de diálogo com autores, conselheiros editoriais e facilitadores deram corpo ao que a publicação propõe: escutar os saberes dos territórios, reconhecer o protagonismo dos povos amazônicos e enfrentar, com coragem e imaginação, as crises climática e civilizatória que já chegaram.

Nicole Gois Débora Faria
Nicole Gois Débora Faria