Boi versus extrativismo

25 de setembro de 2025

A Reserva Extrativista Chico Mendes, criada para proteger o modo de vida de extrativistas do Acre, se tornou um campo de batalha para o avanço da pecuária. Ironicamente, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), batizado com o mesmo nome do líder ambientalista, vem sendo cobrado há sete anos por não fazer o georreferenciamento do território. A Amazônia Real revela como a ausência de demarcação das colocações leva extrativistas a trocarem a floresta pelo gado. A Justiça Federal agora dá um prazo de cinco meses para resolver esse impasse.

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A Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, criada em 1990 e no centro de uma disputa territorial entre extrativistas e pecuaristas, está há sete anos sem o georreferenciamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A falta do mapeamento impede a aplicação das regras de uso da terra e transforma o território em um campo fértil para o desmatamento e a criação ilegal de gado. O Ministério Público Federal (MPF) judicializou o caso, classificando de uma “grave deficiência do serviço público”.

A Justiça Federal no Acre determinou que o ICMBio apresente um planejamento para a delimitação de todas as colocações da Resex Chico Mendes, em razão de uma ação pública do MPF. O órgão tem cinco meses para identificar as medidas perimetrais, a área total, a localização, as confrontantes e as coordenadas georreferenciadas dos seus limites, sob pena de multa diária de 50 mil reais. 

A reportagem da Amazônia Real conversou com dois extrativistas que vivem realidades distintas na Resex. Suas histórias revelam as contradições do território e como a ausência do Estado, outrora na vanguarda da luta ambiental com o conceito da florestania, empurra os moradores para escolhas que desafiam a legalidade.

O extrativista Evanildo Lima de Oliveira vive há 28 anos com a família na colocação Porongaba, no Seringal Nazaré, em Xapuri (AC). Ele conta que o pai adquiriu a área em 1997, após a criação da Resex Chico Mendes. Ele decidiu sair de uma região mais isolada para buscar melhores condições de vida. “Nós morávamos no município de Sena, no Seringal Iaco. Aí meu pai veio e conheceu um cara aqui do Seringal Nazaré, que perguntou se ele não queria comprar a colocação dele. Pediu 800 reais na época, que era muito dinheiro, e meu pai passou mais de ano pagando”, recorda.

Evanildo herdou parte da colocação para viver do extrativismo e “para criar um gadinho”. Ele produz castanha e borracha, mas admite que a renda com o extrativismo não é suficiente para sustentar a família. “O extrativismo não sustenta uma família. Por mês, com o corte da seringa, produz entre 70 e 80 quilos, o que rende no máximo 800 reais. E esse valor só é possível em seis meses do ano em que a produção é viável. A borracha ‘só dá de março a agosto’. Depois para. Volta em novembro, mas em janeiro a cooperativa já nem compra mais”, admite Oliveira sobre a produção de gado Nelore.

A criação de gado, que começou como um complemento, se tornou essencial. A raça Nelore é a mais comum no Brasil. Um bezerro é vendido por cerca de 1.700 reais, enquanto um boi adulto pode passar dos 2.700 reais. Segundo Oliveira, hoje a família toda tem cerca de 80 cabeças. A venda de bezerros e bois é, na prática, o que garante comida na mesa. “Se tirar o nosso gado, ninguém sabe como é que vai viver. Porque o gado, quando a gente consegue vender um bezerro, a gente vai na cidade, faz a feira. O boi ajuda.” Já com a borracha “tem que cortar o ano todo e ainda assim não consegue”.

A situação de Evanildo é a mesma de 80% dos extrativistas na Resex Chico Mendes, que apresentam algum tipo de irregularidades, como criação de gado superior ao permitido e desmatamento. A reserva tem 126 mil cabeças de gado cadastradas, mas o número é maior, segundo o ICMBio.

O extrativista também vive sob a incerteza de ser fiscalizado. Sua colocação foi apontada por desmatamento de 50 hectares, e o ICMBio exigiu a recuperação de 20, sem oferecer apoio técnico ou material. “A gente não tem condição, não tem máquina, não tem muda. Se mandasse as mudas, a dupla, uma máquina, a gente podia plantar seringueira, castanheira, cumaru de ferro.”

A tensão foi exacerbada pela Operação Suçuarana, em junho de 2025, que retirou 400 cabeças de gado apreendidas e gerou protestos de moradores e políticos. A operação provocou ameaças de morte contra o líder ambientalista Raimundo Mendes de Barros, primo de Chico Mendes, que foi acusado de ser o responsável pela fiscalização. 

Oliveira não recebeu ordem formal para retirar seu gado do ICMBio. “Ficam dizendo que vão tirar a gente. A preocupação só aumenta.” Sobre os modos de vida na reserva, ele contextualiza: “A gente tem um sonho, né, pra crescer na vida. E o sonho da gente, o que é melhor, é manter um gadinho. Um gadinho o cara consegue comprar um transporte, comprar uma casa na cidade. Se tirarem isso da gente, fica meio ruim”.

O Seringal Nazaré, onde reside Evanildo, está em uma área de conflito por terras, segundo um relatório de 2024 da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O documento aponta que o município de Xapuri, que integra a região da Amacro, é uma espécie de “laboratório experimental do agronegócio”, concentrando cerca de 60% dos conflitos por terra da Amazônia Ocidental entre 2015 e 2024.

Entre embargos

Jorge Gomes de Souza vive na Resex Chico Mendes há 25 anos, em uma área herdada do sogro em 2002, mas a posse nunca foi formalizada pelo Estado. A imprecisão no reconhecimento das áreas é justamente um dos pontos centrais da Ação Civil Pública, do MPF. “Aqui eles se baseiam em 900 hectares. Eles (ICMBio) mediram e disseram que tem 101 hectares desmatada”, explica Jorge, que vive da “rendazinha da terra”.

Esse cálculo impreciso transforma a reserva, na prática, em uma ocupação desordenada e sem vocação definida. Produtos extrativistas como castanha e borracha, antes predominantes na economia da reserva, hoje pouco contribuem para o sustento da família. O zoneamento interno das colocações se torna inviável, mesmo sendo uma exigência prevista no Plano de Manejo e na legislação ambiental. A localização da casa principal é, muitas vezes, o único dado utilizado na fiscalização.

No ano de 2019, o ICMBio aplicou um embargo de 30 hectares sobre a área de Jorge, alegando desmatamento e impondo multa de 300 mil reais. Ele nega que tenha feito novos cortes e contesta o valor da penalidade. “A terra não valia nem a metade do que eles disseram. Eles disseram que era por onde o fogo tinha passado.”

Em abril de 2025, agentes ambientais desembarcaram de dois helicópteros em frente à casa de Jorge. “Parecia que eu ou minha esposa éramos bandidos”, relata. Ele foi notificado para retirar o gado da área embargada, mas a ordem é impraticável. “O gado fica espalhado. Falei para eles: ‘Vamos entrar em acordo, eu cerco os 30 hectares e tiro o gado de lá’.” A proposta, segundo Jorge, foi ignorada.

Sem o georreferenciamento, o MPF destaca que é impossível atribuir responsabilidade com precisão por infrações, como alertas de desmatamento via satélite ou atos infracionais. E isso faz com que o avanço do desmatamento dentro da Resex se torne expressivo. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mais de 94 mil hectares já foram derrubados até 2023, quase 10% do território, o maior índice entre as  Unidades de Conservação (UCs) do Acre. A devastação é impulsionada pela expansão irregular da pecuária e pelo comércio ilegal de madeira.

Uma poronga acesa

Para Ângela Mendes, filha do líder seringueiro Chico Mendes e coordenadora do Comitê Chico Mendes, o modelo de desenvolvimento sustentável da reserva extrativista está sob ataque de um sistema que privilegia a exploração predatória. “A gente vive sob a força de um sistema opressor, que enriquece destruindo e manipula as narrativas com muito dinheiro. Hoje, o discurso dominante é de que a floresta é um entrave ao desenvolvimento, e isso é muito perigoso”, explica a ativista.

Ângela critica a fragilidade do ICMBio, que falha na fiscalização e na garantia de políticas públicas. Ela afirma que a tensão tem aumentado muito e é resultado direto da  omissão do Estado. “O ICMBio precisa amadurecer e entender a importância social da reserva. Falha no básico e ignora a co-gestão com as associações locais, que estão na linha de frente enfrentando invasões e conflitos.”

Apesar do cenário crítico, Ângela faz questão de destacar ações positivas, como a criação de café, os sistemas agroflorestais e o artesanato do Ateliê  da Floresta. “Essas experiências provam que o modelo dá certo. O problema é que o gado parece mais fácil, mas essa facilidade tem um custo alto: acelera o colapso ambiental”, destaca.

A ativista defende o fortalecimento das reservas extrativistas como estratégia de enfrentamento às mudanças climáticas. “A Resex Chico Mendes é mais do que um território protegido. Ela é uma resposta à crise climática. Proteger esse modelo é proteger o nosso futuro”, alerta Angela Mendes.

Ausência do Estado

Desde 2017, o MPF tem recomendado a realização do georreferenciamento das colocações na Resex Chico Mendes. Neste ano de 2025, a Justiça Federal confirmou essa “omissão continuada” e constatou a ausência de qualquer planejamento, orçamento ou contratação para a delimitação das áreas. Em resposta, o ICMBio alegou que o pedido do MPF poderia interferir em sua programação, caracterizando um “perigo de dano reverso” para o próprio Instituto.

Apesar da alegação do ICMBio, documentos técnicos internos do próprio órgão citados na ação do MPF atestam a “extrema relevância do mapeamento e delimitação” para a gestão e proteção da unidade. Um estudo do Imazon, de 2015, já revelava que a Resex havia sido a 10ª mais desmatada da Amazônia, um reflexo, segundo o MPF, da “reiterada ausência de priorização da proteção”.

A partir de maio, está contando o prazo de cinco meses dado pela Justiça Federal para que o ICMBio apresente um planejamento detalhado para a delimitação das colocações. O documento deve incluir coordenadas georreferenciadas e prever que as atividades de delimitação serão realizadas em conjunto com associações e moradores. O não cumprimento do prazo sujeitará o ICMBio a uma multa diária de 50 mil reais. A ação pública também destaca a insuficiência de pessoal, com apenas três analistas e um técnico responsáveis pela gestão de um território de quase 1 milhão de hectares.

O que diz o ICMBio

Em resposta à Amazônia Real, o ICMBio defendeu que a ausência de um georreferenciamento rigoroso das colocações não compromete a gestão da reserva. O órgão argumenta que o mapeamento detalhado, que se assemelha a um loteamento rural, não é adequado para uma UC de uso coletivo. O instituto afirma que já utiliza bases de dados com coordenadas de pontos identificadores, como as casas-sede, para a fiscalização e a gestão da unidade, o que, em sua avaliação, permite a maioria das ações necessárias.

Apesar das denúncias de conflitos e da atuação de desmatadores, o ICMBio alega que a fiscalização e a gestão participativa com associações locais são eficazes para coibir práticas ilegais e mediar disputas. Sobre a determinação judicial, o Instituto informou que apresentará uma proposta ao MPF e à Justiça Federal em momento oportuno. Ele reforça que não adotará mecanismos que configurem o parcelamento do território, e defende que a Resex Chico Mendes tem se mostrado efetiva na proteção ambiental e dos modos de vida tradicionais, especialmente quando comparada à situação de seu entorno.

Em relação ao caso do extrativista Jorge Gomes, o ICMBio explica que as abordagens são realizadas de modo cordial e que os embargos são sanções administrativas em casos de infrações. O órgão detalha que o processo de embargo segue etapas formais, como a lavratura de auto de infração e a abertura de um processo administrativo eletrônico, conduzido pelo Sistema Eletrônico de Informações (SEI), que garante o direito de defesa. O embargo só é suspenso se o infrator comprovar a regularização e a adoção de medidas corretivas, e todo o processo pode levar anos.

A publicação desta reportagem é fruto de parceria entre a Revista Problemas Brasileiros e o portal Amazônia RealAcesse aqui o conteúdo original.

Hellen Lirtêz | Amazônia Real Annima de Mattos
Hellen Lirtêz | Amazônia Real Annima de Mattos